It, de Stephen King, é um daqueles calhamaços que parecem crescer folhas à medida que se vai lendo (tem mais de mil páginas) e ainda bem, porque é tão bom que não se quer que acabe. É a história de um grupo de meia idade que regressa à sua aldeia natal para destruir um mal que vem à superfície a cada vinte e sete anos para se alimentar dos receios da população, especialmente das crianças, cujos medos são mais facilmente recriáveis. Enquanto se preparam para exorcizar a aldeia de uma vez por todas, recordam-se de quando, vinte e sete anos antes, o enfrentaram pela primeira vez e as provações que passaram para derrotá-lo.
Muito se tem frisado que esta é a primeira adaptação cinematográfica (2017) do livro mas, apesar de rejeitar tratar-se doremake da minissérie de dois episódios que em 1990 foi produzida para TV mas atravessou o mundo em VHS, a verdade é que o novo filme conta apenas metade da história e é preciso aguardar por meados de 2019 para ver a trama concluída. Continua, assim, o ardil dos estúdios em roubar o cinéfilo.
Culminando um longo braço-de-ferro entre o estúdio e Cary Joji Fukunaga (o realizador da aclamada primeira temporada de True Detective, 2014) com o abandono deste por divergências criativas, a correr veio Andy Muschietti, ainda a brandir os números já meio apagados do sucesso obtido com Mamã em 2013, uma longa-metragem que ele e a esposa tinham concebido a partir de uma curta-metragem de apenas três minutos. Para tornar o guião de Fukunaga mais agradável ao palato, trouxeram Chase Palmer, obscuro realizador-argumentista de duas curtas metragens do início do século, que agora dá seminários com o chamariz de ter escrito algo que rendeu 500 milhões de dólares e se tornou o mais rentável filme de terror de sempre.
Infelizmente, do romance surge apenas uma versão almofadada, superficial e transversal, truncada por não se desenvolver através das memórias difusas dos protagonistas adultos e dividida por dois filmes, ficando por enquanto pela metade e, se aquém em termos narrativos, mais maneta se revela nos visuais, porque ninguém se assusta com um palhaço dentudo com ar imberbe que, à falta de melhor, abre a boca a diversas filas de dentes para não ser tão patético. Tim Curry, independentemente do seu traje e pintura mais simplórios, conseguia ser um Pennywise mais ameaçador porque lhe era visível no rosto uma raiva contida, sempre pronta a quebrar a superfície, que falta a Bill Skarsgard, mais óbvio por trás da fatiota e maquilhagem elaboradas. A confirmar que por vezes menos é mais, até o palhaço-mor deClownhouse (1989), a estreia económica de Victor Salva, era mais ameaçador, graças à expressividade de Michael Jerome West por trás do nariz vermelho.
Para as audiências do novo milénio (o livro foi publicado em 1986), um mal que volta de 27 em 27 anos para raptar crianças parece copiado de Jeepers Creepers (2001), onde uma entidade demoníaca acorda durante 23 dias, de 23 em 23 anos, para se alimentar de humanos na América rural. E It, uma entidade sem nome que se manifesta como os piores pesadelos das suas vítimas, surge como palhaço, leproso (terá sido o mais parecido com um zombie de que King se lembrou?), óleo que sai pelas torneiras e uma criatura que mais parece o retrato de Jeanne Hebuterne, a musa de Amedeo Modigliani... qual dos miúdos tem medo da arte pictórica da segunda década do século XX?
Do guião de Fukunaga, Chase Palmer excisou a cena de incesto, ficando-se com um trauma quase simbólico em que um pai insiste com a filha se ela ainda é a sua menina mas não sabemos o que isso comporta, e transformou a orgia infantil, que o estúdio mandou abortar, numa cena de beijos simples, não se percebendo sequer no livro de King como é que seis rapazes terem sexo com uma rapariga, à vez, os torna todos mais próximos, quando na verdade ficam apenas mais próximos dela e ela tem seis vezes mais trabalho do que eles; uma verdadeira orgia, bissexual, sim, poderia eventualmente enquadrar-se, nessa óptica, como acto de união de um grupo, mas claro que nem King nem um filme a pedir a adesão incondicional do público puxaria dessa carta. Seja como for, há que concordar com a New Line neste ponto, sexo (entre adolescentes ou adultos) não existe para criar união de grupo mas por amor e/ou paixão, e esses sentimentos estavam, à partida, ausentes no objectivo desta empreitada.
O que funciona menos é que, quando Pennywise tem os protagonistas à sua mercê, não chega a fazer-lhes mal, o que é uma fraqueza imperdoável num filme de terror. É verdade que come o braço a uma criança no introito, mas tal é meramente pragmático, cumpre o propósito específico de estabelecer o perigo, mas é fácil fazê-lo a um figurante, o risco seria virá-lo contra um protagonista. Porém, quando, em mais de uma situação, tem diversas vítimas à disposição, não faz mais do que ladrar (um dos miúdos parte o braço porque o chão cede e outro é cortado na barriga por um ferro que espetaram na cabeça de Pennywise e este se vira, confusamente, mas não são actos deliberados e conscientes de uma entidade que pode decidir da vida ou morte de qualquer um deles). A própria derrota de Pennywise no clímax é inacreditavelmente ridícula e simplória.
Deste «Primeiro Capítulo» de It (2017), fica apenas na retina a representação de Sophia Lillis, que podia ser também anova Annie (e não só por ser ruiva), ficando os restantes losers na categoria de sofríveis (lote em que se inclui Finn Wolfhard, que fez melhor na série Stranger Things, também inspirada por Stephen King) e Nicholas Hamilton (que deveria ter uma presença capaz de fazer borrarem-se de medo todos os Losers, ameaça tão ou mais real do que a de Pennywise) na de vergonhosamente incapaz. Objectivamente, It fica, entre as adaptações recentes de King, mais aquém do que 1922 e muito abaixo da minissérie Mr. Mercedes, única a merecer selo de qualidade. Quanto ao trabalho de Andy Muschietti, o realizador fez melhor em Mamã. Algo que parece sintomático de one trick directors, como aconteceu com David F. Sandberg ao transitar de Lights Out (2016) para Annabelle Creation (2017).
It 2017
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