Thursday, February 9, 2012

Millenium1: Os Homens Que Odeiam As Mulheres, de David Fincher

O cinema sueco foi revitalizado em 2009, com a adaptação cinematográfica do sucesso literário de Stieg Larsson, a trilogiaMillenium, publicada em 2005. O primeiro capítulo foi entregue a Niels Arden Oplev e os restantes a Daniel Alfredson. Agora, a tripla entrega foi feita a David Fincher, para convertê-los para a língua anglo-saxónica.
Se algum remake era perfeitamente desnecessário, era este. Dito isto, é impossível não comparar ambas adaptações, porque partilham o enredo, o estilo e estão historicamente próximas. Pode, inclusivamente, classificar-se como fincheriana a atenção ao detalhe e o profissionalismo exemplar de Niels Arden Oplev, tenso e crispado na perícia com que conduziu o thriller original.
Não pode deixar de ser curioso, no mínimo, que seja precisamente David Fincher, (Sete Pecados Mortais (1995), Clube de Combate(1999), O Jogo (1997) e Sala de Pânico (2002) o responsável peloremake. Mas, neste braço-de-ferro, ganhou o dinamarquês, com um filme mais orgânico, fluido e misterioso. Fincher teve contra si uma pressão redobrada, é certo, mas a sua aposta peca por excesso de encenação, os eventos mais determinantes parecem construídos como blocos estanques, as alterações cirúrgicas no guião são reprováveis e a escolha de actores é infeliz.
Convém frisar que David Fincher já não é infalível desde Zodíaco(2007). Aborrecido Caso de Benjamim Button (2008) e A Rede Social (2010) deixaram muito a desejar e o caso repete-se, começando nos despropositados créditos iniciais. Apesar do protagonismo de Daniel Craig, Os Homens Que Odeiam As Mulheresnão é um fascículo de James Bond e este vídeoclip de cabeças femininas cobertas de petróleo e quebradas em estilhaços, para além de não ser visualmente estimulante, não encontra, excepto por parecer odiá-las, relação com a história que se segue. A intenção de Fincher foi destacar-se do filme original, desorientando o espectador. Consegue-o, mas o prémio é nulo.
A Adaptação do livro ficou a cargo de Steven Zaillian, oscarizado pelaLista de Schindler (1992) e com mais três nomeações (incluindo a deste ano, por Moneyball), mas cuja balança pesa negativamente porHannibal (2001) e Gangues de Nova Iorque (2002). Quanto a Os Homens Que Odeiam As Mulheres, Zaillian, provavelmente por causa do sucesso do filme original, que rendeu cento e cinco milhões de dólares globalmente (dez milhões dos quais nas bilheteiras norte-americanas), decidiu alterar alguns elementos-chave da trama, nomeadamente no clímax e desfecho, mas não foi feliz nas escolhas, que soam apenas a versões B.
Quanto ao elenco, Daniel Craig e Rooney Mara foram contratados para a trilogia, ainda que a modesta receita de bilheteira do primeiro tomo quase tenha deixado o projecto em suspenso. Seria a segunda vez que Daniel Craig passava por essa experiência, depois de A Bússola Dourada (2007). Como Mikael Blonkvist, Craig é fisicamente mais imponente (diz que ganhou peso para o papel) do que Michael Niqvist (o homónimo sueco), mas peca por uma prestação cansada e abatida, ao passo que Niqvist se mostrava mais focado na investigação e incomodado com a derrota judicial, onde fora injustamente condenado por difamação, o que no original implicava pena de prisão e na versão americana só o dever de indemnizar.
Quanto a Rooney Mara, as expectativas eram muito superiores, por causa da interpretação aclamada de Noomi Rapace, uma autêntica força da natureza, gato bravo de olhar inquisitivo, onde se sentia, a par da agressividade latente, a inteligência que as sobrancelhas oxigenadas de Rooney Mara evaporam. De constituição frágil e sem olhar ninguém nos olhos, esta americana de 27 anos tem ainda a agravante de não passar por 23 (Rapace também não, mas tinha tudo o resto a correr de feição), a idade da personagem.
Podem saltar este parágrafo, sob pena de revelações precoces, mas a verdade é que não chega a constituir surpresa que o culpado seja o personagem interpretado por Stellan Skarsgard, actor de expressão odiosa, mesmo quando sorri. Afinal, este é o homem que humilhou a esposa de mil e uma maneiras, a mando do igualmente misógino Lars von Trier (Ondas de Paixão, 1996). Mas, também, porque, de entre os suspeitos, é o único que o guião dá minimamente a conhecer, com quem Blomqvist chega a privar, e um dos maiores prazeres de um escritor policial (e por isso também uma das suas fraquezas, no que concerne ao perigo da previsibilidade), é familiarizar o leitor com o assassino, para depois o surpreender com a sua verdadeira identidade. Claro que isso só funciona quando há vários suspeitos em pé de igualdade e o culpado é o que menos indícios apresenta. 
Oportunidade tristemente perdida para David Fincher de voltar à velha forma. Um Daniel Craig desmotivado e uma Rooney Mara tímida fazem logo estalar a pintura, mas é a dispersão, em vez de concentração, da narrativa, o que mais desilude. No original, havia duas histórias paralelas, que eventualmente se sobrepunham (quando os protagonistas juntavam esforços), mas o puzzle era de tal forma intenso que as sabíamos peças do mesmo jogo. No remake, as cenas que ajudam a caracterizar Lisbeth Salander parecem descartáveis, como se o todo se aguentasse sem elas. A violação, por exemplo, é muito mais perturbadora no filme sueco, enquanto que aqui é um pró-forma, com o público mais preocupado em absorver a nudez da actriz do que em contorcer-se, face ao choque, na cadeira.  
No pior dos pecados, a personagem de Lisbeth Salander é tratada com desprezo por Fincher e Zaillian. No final do filme, é ela quem, segura e implacável, entrega à justiça aquele que representa a pedra no sapato de Blonkvist, numa oferenda única a este indivíduo que ela vê como o primeiro  homem em quem pode confiar desde há muito tempo. Mas o remake reduz isso a um fait-divers, que ela tem de completar com um blusão de couro, como se Blonkvist fosse dar mais importância a uma peça de vestuário do que à queda de um inimigo. E, frágil, ela ainda se põe a jeito de um desgosto amoroso, em vez de ser Blonkvist o elo confuso na sua atracção pela mulher que lhe salvou a vida, não uma, mas duas vezes (por falar em salvar a vida, de onde surge aquele providencial taco de golfe quebra-maxilares, quando nada é indicado sobre Martin Vanger, cujo desporto é a caça, se dedicar a tacadas na neve?). Nesta machista reviravoltamainstream, fica a dúvida no valor de investigador de Blonkvist, já que é a filha dele quem identifica as notas de Harriet como bíblicas e Salander quem converte essas notas na identidade das vítimas; tudo o que ele faz é recolher fotografias…
he Girl with the Dragon Tattoo 2011

A Pele Onde Eu Vivo, de Pedro Almodóvar

Outrora tão avassaladora como a de Godzilla, a passada de Pedro Almodóvar cada vez deixa uma marca menor no passeio do celulóide. Cineasta de culto que se internacionalizou com Mulheres À Beira de Um Ataque de Nervos (1988) e tem como obra maior Tudo Sobre A Minha Mãe (1999), parece ter trocado a estética suja e mal tratada dos seus primeiros sucessos, os viscerais Matador (1986), Lei do Desejo (1987) e Ata-me (1990), por um academismo desconcertante. Esquece-se, porém, de que há histórias que pedem aquele extremismo visual de sangue na guelra.
Almodóvar adaptou o romance Mygale, de Thierry Jonquet, publicado em 1995, que diz ter lido há cerca de 10 anos, período durante o qual trabalhou num guião que se foi naturalmente afastando do original, nomeadamente por influência de Les Yeaux San Visage (1960), de Georges Franju. Convém referir que Mygale trabalha diversas tramas de forma independente, que se tocam sem se cruzarem até ao final, onde todos os eventos se precipitam para a surpreendente revelação.Les Yeaux San Visage é uma história linear, cujos únicos pontos comuns são um cirurgião plástico e uma mulher cativa, sujeita a diversos transplantes de pele.
No fundo, A Pele Onde Eu Vivo é uma revisitação do fenómenoFrankenstein em formato Noiva. Tão complicado quanto a recriação de um corpo humano através de diferentes fontes parciais, também o é a aglutinação de um argumento que se quer diferente do original, quando este é absolutamente irrepreensível. Aqui, Almodóvar fracassa redondamente. Ao tentar fundir a história de horror ao seu melodrama típico, o cineasta faz alterações que estão longe de ser mera cosmética. O ritmo é irritante e as costuras da trama esgaçam por todos os lados. A sequência de eventos pedia uma completa reorganização, uma vez que as surpresas surgem aos tropeções, como acidentes de percurso, e as analepses travam a acção, como um novelo cheio de nós, impedindo que o enredo flua sem dificuldades. Se alguma coisa, o determinismo temporal só atrapalha.
Um cirurgião plástico tem uma mulher cativa num quarto da sua casa, de que apenas a governanta tem conhecimento. Na sua ausência, o filho da governanta visita-a e não tem boas intenções. O mistério da identidade da prisioneira vai ser o cerne da história, cuja origem obriga a retroceder seis anos, e mais alguns se quisermos abarcar o acidente mortal da esposa do cirurgião, onde o filho da governanta ia ao volante. Sim, este resumo tem os traços típicos de Almodóvar, o problema está no desenvolvimento e interligação.
As opções estéticas não ajudam. Assiste-se a uma plasticidade anticéptica de fria esterilidade e composição ausente que, a princípio, traz à memória Aftermath, uma curta-metragem de Nacho Cerdà (1994), que segue uma autópsia com direito a pausa para necrofilia. A direcção de fotografia de José Luís Alcaine é esterilizada e pouco apelativa, como se passasse lixívia sobre algo que se queria objecto de fúria incontrolável. Aliás, essa é a diferença entre Mygale e A Pele Onde Eu Vivo. Enquanto o cirurgião do livro age por vingança e tem prazer em assistir às brutais agressões a que a sua cativa é sujeita às mãos dos homens aos quais a prostitui, no filme a vítima é modelada com os traços da falecida esposa do cirurgião e ninguém sabe da existência dela. Logo aqui, torna-se incompreensível o comportamento do cirurgião, cuja vingança é acompanhada de algo que, à falta de termo mais apropriado, poderá ser classificado como amor. Esta estruturação de intenções contraditórias, de que apenas temos os factos, nunca é explicada, tanto mais que a expressão de António Banderas, a encarnar o cirurgião, é impenetrável. Mais expressiva é a cativa Vera (que no livro se chama, muito mais significativamente, Eva), numa interpretação de Elena Anaya como já não se lhe via desde Júlia e o Sexo (2001), onde o seu corpo desnudo era já uma gema, mas paravoyeurismo recomenda-se antes Habitación en Roma (2010). 
A Pele Onde Eu Vivo não deixa de ser um filme intrigante, mas podia ter sido muito mais do que aquilo que oferece, uma telenovela surrealista de contornos negros, edificada numa não linearidade pouco apelativa e filmada em moldes clássicos que esvaem os sentimentos invocados de toda a sua intensidade ou lógica. Há algo de inerentemente errado neste filme, que se espalha como um cancro e obsta a que dele se tire maior partido. Coisas como a esposa do cirurgião se ter suicidado da mesma forma que a filha, o filho da governanta aparecer por casualidade ao fim de dez anos, ele que foi responsável pela condição de viúvo do cirurgião, a governanta e o filho serem emigrantes brasileiros mas actores espanhóis (que função cumpre essa nacionalidade, por trás do sotaque tão falso?), o fato de tigre, a necessidade de Vera ter o rosto da esposa do cirurgião, confundindo as intenções do dito, etc. Realizador desigual, Pedro Almodóvar está longe de assinar aqui um dos seus melhores trabalhos.
La Piel Que Habito 2011

Straw Dogs, de Rod Lurie

Subgénero do exploitation, o tema violação e vingança foi introduzido no cinema pelo sueco Igmar Bergman (A Fonte da Virgem, 1960) e tem proliferado desde então, com mais ou menos variações, e até com outras assinaturas famosas: Wes Craven (A Última Casa da Esquerda, 1972), Sam Peckimpah (Straw Dogs, 1971), Michael Winner (Death Wish, 1974), Abel Ferrara (Ms.45, 1981) Clint Eastwood (Impacto Súbito, 1983), Ridley Scott (Thelma e Louise, 1991), Joe Schlesinger (Olho Por Olho, 1996), Gaspar Noé (Irreversível, 2002), Quentin Tarantino (Kill Bill, 2003) e Kim Ji-woon (Eu Vi o Diabo, 2010).
Cansados de procurar novas vítimas, os estúdios norte-americanos voltaram a violar as mesmas (Takashi Ishii, em Freeze Me, 2000, já dera o alerta). Extinto o conceito de pousio, chegam os remakes: A Última Casa da Esquerda (2009), I Spit In Your Grave (2010) e Straw Dogs (2011), ensombrados que ficam pela dupla adaptação do primeiro tomo da trilogia Millenium, de Stieg Larsson: Os Homens Que Odeiam As Mulheres, em 2009 por Niels Arden Oplev e em 2011 por David Fincher.
Para matéria tão controversa, torna-se vital abordá-la de um ângulo que a justifique ou premeie, para que não descambe em pornografia ou total abjecção. Quanto a Straw Dogs (Cães de Palha, 1971), o realizador Sam Peckimpah adaptou o livro do escocês Gordon Williams (com o apoio do argumentista David Goodman) e acrescentou-lhe as cenas mais espinhosas. Peckimpah, alcoólico e irascível ao tempo das filmagens (chegou a sofrer de pneumonia durante uma noite de copos e teve de ser hospitalizado), pretendia um grafismo tal que a violação incluísse sodomia facilmente perceptível, e assim teria sido se a actriz Susan George não tivesse ameaçado demitir-se. Thriller psicológico, claustrofóbico no seu crescendo de desconforto e reconhecidamente acutilante no seu retrato da violência, foi recebido com polémica e banido em países como a Inglaterra, o que amiúde acontece com os filmes que se atrevem, sem complacências, a atravessar barreiras conservadoras.
Cães de Palha era visceral e directo na sua sistematização (um casal composto por um nerd e uma liberal estabelece-se numa aldeia da província e o comportamento ameaçador dos rústicos locais ameaça desde cedo a harmonia; isto culmina em duplo estupro e numa invasão ao domicílio que se transforma em banho de sangue), mas complexo na perturbadora e provocadora exposição aos efeitos dobullying, dos códigos de honra e das relações – a própria violação comporta o seu quê de ambiguidade moral, já que a vítima manifesta permeabilidade aos avanços do engatatão, por sentir a falta de atenção por parte do marido, demasiado absorto nas fórmulas matemáticas da sua profissão do que nas necessidades dela; só que, a esta ambígua e questionável violação, segue-se outra, por parte de terceiro, que é brutal e horrível. Em vez de sucumbir a este pesadelo, o argumento não deixa de confundir e baralhar. É que o marido nunca chega a saber dos actos de natureza sexual em que a mulher tomou parte, mas, depois de se deixar humilhar em diversas situações, decide fincar o pé quanto a entregar um simplório a um informal pelotão de linchamento, que o acusa de ter atacado a filha de um deles. E novo horror se despenha sobre a sua casa. Por tudo isto, Cães de Palha é uma obra devastadora, um desafio chocante aos pilares da coexistência social, que abala as fronteiras do esquematismo entre o bem e o mal, com todos os personagens a pisarem algum tipo de área cinzenta, e obriga a elaborados malabarismos mentais de justificação e racionalização.
Rod Lurie, crítico de cinema feito realizador, decidiu refazer Cães de Palha, adaptando ele próprio o argumento. Qual a sua motivação, como pretende competir com um colosso danado como o original? Segundo o próprio, mantendo a estrutura narrativa, mas mudando-lhe a filosofia inerente, ou seja, contrapor à ideia de Peckimpah, de que o homem é instintivamente violento, a de que o homem é condicionado à violência quando empurrado ao extremo. Tirando a profissão do protagonista e a geografia, a adaptação é bastante fiel, alterando apenas a atitude em alguns diálogos e tendo a precaução de tirar a referida ambiguidade à atitude da vítima perante a violação.
O projecto chegou-lhe às mãos pelo amigo e co-produtor Marc Frydman, porque os direitos de autor da Miramax estavam a expirar, mas diz que foi Dustin Hoffman, protagonista do original, que o impulsionou, ao sintetizar Cães de Palha num western. Lurie é um nome que se associa a três fracassos sucessivos (o filme O Último Castelo e as séries Na Linha de Fogo e Senhora Presidente) e a dois filmes curiosos (O Jogo do Poder, 2000, e O Renascer do Campeão, 2007), pelo que Straw Dogs seria uma prova de fogo. Foi ao forno e queimou-se.
Relativamente ao elenco, é curioso que o casal protagonista seja constituído por James Marsden e Kate Bosworth, que já tinham junto os trapinhos em Super-Homem: O Regresso, (2005), onde a sua relação era ameaçada pelo Homem de Aço; aqui, em vez de um justiceiro de collants, há Alexander Skarsgard, presença habitual como torre vampira e viperina em quatro temporadas de Sangue Fresco, série passada igualmente no sul dos EUA. Comparado a Skarsgard, Marstens é quase um anão, o que também lhe foi desvantajoso na adaptação dos X Men (2001), já que o seu Ciclopefoi obliterado pelo colossal Wolverine de Hugh Jackman. Fora deste triângulo, que inclui marido, mulher e violador nº1, o filme sai prejudicado pela caricatura de James Woods e pela figura de Dominic Purcell, cujo personagem deveria ser interpretado por um desconhecido, de maneira a fazer parte do cenário até intervir na acção. As restantes prestações são praticamente figurações, com o violador nº2 a nunca obter o menor realce.
Straw Dogs é desnecessário e muito inferior ao original. Quanto às alterações filosóficas que Rod Lurie queria introduzir, são irrisórias. Não se percebe, nesta versão em que a violação é exclusivamente indesejada, porque é que a vítima não conta ao marido ou se dirige espontaneamente à polícia, já que é uma feminista financeiramente independente. O maniqueísmo de que o Sul dos EUA é uma região sem lei não tem paralelo na realidade mas, mesmo que tivesse, o xerife do filme não faz parte da pandilha violadora, antes lhe sendo adverso, pelo que ela estaria segura na sua acusação. No original, a vítima guardava segredo, em parte pela vergonha de ter aberto a porta ao violador nº1 e não se ter oposto aos seus avanços. Noremake, isso não acontece, com ela a manifestar sempre asco à atenção dele, com a excepção da cena em que surge à janela do quarto de camisa aberta, cena que, uma vez mais, fazia sentido no original e não no remake.
A própria cena do estupro, que no original dava nós ao estômago do espectador, é agora um mero espectáculo de tímido voyeurismo, sem as nuances da representação de Susan George ou a exibição da nudez de Kate Bosworth, o que alargaria o espectro da sua fragilidade e exposição (a nudez indesejada é sinónimo de vergonha); além disso, violador nº1 e nº2 parecem estar em conluio, o que esvazia o personagem do violador nº1 de qualquer sentimento, ao contrário do que o realizador pretendia provar; e isto é ainda mais absurdo se tivermos em consideração que, no original, o violador nº2 só consegue levar a sua avante apontando uma caçadeira ao violador nº1, que genuinamente achava que a vítima estava interessada nele, pelas deixas que julgara receber da atitude permissiva dela.
Por todos os seus defeitos ao nível da adaptação do argumento, especialmente onde o realizador se vangloriava das alterações, e pela genérica inutilidade de criar uma obra menor à custa de um filme de culto, Straw Dogs vale apenas como curiosidade, ao jeito do Psico(1998) de Gus Van Sant.
Straw Dogs 2011

Caçadores de Cabeças, de Morten Tyldum

Baseado no bestseller homónimo do escandinavo Jo Nesbo, este é umthriller frio sobre um caçador de cabeças (título dado à sua profissão de topo no serviço de Recursos Humanos, especializado na colocação de directores) que sofre do complexo de Napoleão, compensado pela excessiva ostentação e uma mulher acima do seu nível (e estatura). Para evitar a insolvência, faz biscates como ladrão de arte, surripiando peças detidas por coleccionadores particulares, precisamente aqueles que recorrem a si profissionalmente. Confiante no seu próprio calculismo, um passo em falso fá-lo descobrir o que é ter a cabeça a prémio.
Pleno de intriga e suspenseCaçadores de Cabeças nunca perde o ritmo. Excelente direcção de fotografia, realização e interpretações. Para um trintão com um emprego sentado, a única falha narrativa que se verifica é a resistência física do protagonista. Não chega a ser um caso de invulnerabilidade, mas quem é que, no dia seguinte a ter sido hospitalizado por causa de um ataque de um cão feroz, sobrevive, incólume, a uma colisão frontal em automóvel contra um camião TIR, que fez voar a viatura até um precipício e transformou os restantes passageiros em polpa?
Mas, é tudo uma questão de esticar a corda à credibilidade sem parti-la. A gestão desse risco é uma responsabilidade que o realizador cumpre sem piscar, transformando a paranóia do protagonista e a resolução do mistério na única preocupação do público. Já foram adquiridos os direitos de autor para um remakenorte-americano, mas nunca deve premiar-se preguiça. Aconselha-se, desde já, o original.
Hodejegerne 2011

A Lonely Place to Die, de Julian Gilbey

Aventureiros de domingo sob ataque predador. Um grupo de alpinistas encontra uma menina enterrada numa caixa de contraplacado, no meio de um bosque perdido nas Highlands escocesas. Dividem-se para chamar ajuda e tornam-se o alvo dos sequestradores. Uma equipa de extracção foi enviada pelo pai da criança, para negociar com os sequestradores, que entretanto perderam a galinha de ovos de ouro. É com estas bolas que se faz o malabarismo de A Lonely Place to Die, uma mistura de Cliffhanger eDeliverance, que tem em Melissa George uma grande presença feminina, mas que acaba por ser mais forma do que conteúdo e esboroa-se assim que isso se torna claro.
A direcção de fotografia é excelente, com as paisagens naturais das montanhas escocesas a ganharem vida, mas quem não a ganha são os personagens, baratas tontas a correrem, escalarem e nadarem pelos cenários, entre entorses e tiros. Pedia-se mais a este survival thriller escrito pelo realizador e pelo irmão, mas o básico não é mau de todo. A falta de originalidade que se encontra quando as peças fazem sentido entristece face ao mistério inicial, mas há emoção que chegue, ainda que não tão forte como se esperaria. Melissa George faz das tripas coração (a primeira escolha tinha recaído sobre Franka Potente) e Ed Speelers lamenta que ainda haja quem o associe aEragon, o grande fiasco da fantasia de 2006.
A Lonely Place to Die 2011

Martha Marcy May Marlene, de Sean Durkin

Martha, personagem desenquadrada na sociedade, à nora depois da morte da mãe, contacta a irmã após uma ausência de dois anos, período durante o qual viveu no seio de um culto patriarcal embrionário, um grupo misto com o desejo de auto-suficiência e partilha total, do trabalho aos corpos, mas cuja filosofia inferioriza as mulheres, não respeita a propriedade privada nem o direito à vida de terceiros.
Martha, que se refugia na casa de campo da irmã para recuperar do trauma, revela-se incapaz de adaptar-se à normalidade e manifesta uma clara dissociação da realidade, não distinguindo inteiramente passado e presente, ao ponto de sentir que ambos correm em simultâneo. O final em aberto não refuta, sequer, a hipótese de a narrativa, em vez de seguir o percurso da personagem desde que escapa da seita, no início do filme, ser fundamentalmente uma alucinação, ao estilo do excelente Jacob’s Ladder – BZ Viagem Alucinante (1990), de Adrian Lyne.
Uma estreia para o realizador (Sean Durkin também escreveu) e para a protagonista (Elizabeth Olsen é a irmã mais nova das gémeas Mary-Kate e Ashley Olsen), Martha Marcy May Marlene é um drama inquietante, carregado de um suspense tão arrepiante que o aproxima do terror psicológico, de tal modo bem urdido que deixa o público indefeso, como uma vítima amarrada ao assento. O ritmo é propositadamente enervante, pautado contraditoriamente por partes iguais de ansiedade e sonolência, numa desorientação que visa a não compreensão imediata de toda a dimensão do trauma da personagem, que nos faz vaguear por um trilho às escuras, iluminado apenas por migalhas estrategicamente dispostas. É nessa técnica àHansel e Gretel que o filme se torna tão recompensador.
Martha Marcy May Marlene 2011

The Woman, de Lucky McKee

May (2002), uma espécie de boneca de trapos ao estilo Frankenstein, arrecadou algum estatuto de culto por parte da massa pouco exigente das sessões nocturnas de TV por Cabo, o que garantiu ao seu realizador, Lucky McKee, presença na pouco criteriosa série Masters of Horror (2005), antes mesmo do seu filme seguinte, The Woods(2006), um bocejo sobre bruxas ecológicas, ser lançado directamente para vídeo.
Jack Ketchum é o pseudónimo de Dallas Mayr, um escritor de terror que foi protégé de Robert Bloch (autor de Psycho e protégé de H.P.Lovecraft). Lucky McKee produziu as adaptações cinematográficas dos seus romances The Lost (2005) e Red (2008), antes de ambos decidirem avançar com o projecto conjunto A Mulher(2011), escrito por Ketchum e rodado por McKee, a lançar simultaneamente em livro e filme. Trata-se da sequela a The Offspring que, em 2009, foi igualmente livro e filme, com guião do próprio Ketchum e realizado por Andrew van den Houton (presidente da Moderncité e produtor de diversas adaptações de livros de Ketchum: The Girl Next Door, The Offspring e A Mulher). Quem não o viu, deverá dar primazia a A Mulher. Aconselha-se, inclusivamente, total ignorância em relação a The Offspring, que não passa de umtorture porn de baixo orçamento, com uma família de canibais (do tipo Massacre no Texas) e as suas dietas pouco voluntariosas. Uma vez que a Mulher do título homónimo nunca tem o seu passado explicado, é preferível que assim permaneça.
Em A Mulher, um advogado de uma pequena localidade encontra, num domingo de caça nos bosques, uma mulher selvagem, que decide capturar e aprisionar na cave da arrecadação, de maneira a “civilizá-la”. Uma vez que entregá-la às autoridades nunca lhe passou pela cabeça, este comportamento pouco ortodoxo deixa antever a disfuncionalidade do seu tecto familiar, onde esposa e filha vivem em medo da sua misoginia e sadismo. Segue-se a subversão dos valores morais e familiares na América profunda, em tom chocante e desconfortável.
A Mulher é um filme arriscado, que se embrenha no bizarro sem desculpas e mantém a curiosidade até ao final, mas não impede que os seus enguiços se façam sentir, por vezes pesadamente. Entre quem sabe e quem pode, Lucky McKee fica de fora. Começa coxo e termina aos tropeções, com uma inconsistente adição anoftálmica, na recta final, a borrar todo o equilíbrio lógico, apesar de doentio, entretanto alcançado. É o que acontece quando se é mais papista do que o papa…
Senso comum também é coisa que parece ter ficado de fora. A Mulher é uma criatura imunda, com uma higiene dentária hedionda, que vive no mato como um animal, mas aparentemente preocupa-se em depilar as pernas e as axilas e em manter o tufo vaginal num respeitável triângulo. O choque que se pretende com a revelação em relação à filha prenha já se adivinhava muito antes, desde o comentário da professora à mudança de vestuário dela. A mãe decidiu confrontar o filho perante o pai, invocando que este se tocara à custa da prisioneira, mas não menciona o uso do alicate, que seria um argumento muito mais ponderoso (no mínimo, estragava a mercadoria). Dispensável era a adição de irritantes e desajustadas canções rock indie na banda sonora, que anulam qualquer sensação de realidade às cenas que interrompem. E que objectivo cumpre a Mulher levar a menina consigo, no final?
Quanto ao elenco, Pollyanna McIntosh está excelente, Angela Bettis faz mais do mesmo (ela que foi May, no filme May) e Sean Bridgers funciona para estabelecer a dicotomia entre a sua presença pública e privada, mas como patriarca sádico fica aquém do recado. Carlee Baker, ainda que bonita, é muito afectada e teatral. A Mulhercapitaliza no enredo incomum, o que o tornava, à partida, promissor, mas vulgariza-se com o tratamento pedestre. Não é convincente e não excede barreiras, nem sequer do mau gosto.
The Woman 2011