Thursday, September 18, 2014

The Rover, de David Michôd

Estou atrás do meu carro. Tem três pessoas dentroViu-o? Quando, aparentemente, o direito à propriedade se sobrepõe ao da vida humana, o carro de um homem é um bem intocável e é seguro dizer que a história vai acabar mal para alguém. O Rover arranca devagar, mas vai experimentando as mudanças pelo caminho e o som de tiros nunca é de aviso nem do escape. Esotérico e implacável, avança pelas planícies desertas do outback australiano com uma determinação invulgar, dez anos depois do colapso, dentes podres e maus cortes de cabelo para Guy Pearce e Robert Pattinson, com Scoot McNairy a manter-se na corrida da visibilidade desde Monsters (2010).
A segunda longa-metragem de David Michôd parte de uma ideia de Joel Edgerton, actor que dirigiu em OReino Animal (2010), onde também representava Guy Pearce. O Rover é uma espécie de western, com um homem a fazer o que for preciso para reaver o seu carro, o que fica explicado no final, mas não é a única coisa que faz coçar a cabeça até lá. Tem também lugar para amizades forjadas na terra e onde o sangue se confunde com a água, o cão é o melhor amigo do homem e o destino da mulher está nas mãos do marido.
The Rover 2014 

A Maldição 3, de Toby Wilkins

Maldição que nasce torta, nem à terceira se endireita. Desta vez, é explicada tantas vezes que mais parece a versão para totós e o enquadramento “terror em prédio de apartamentos” parece saído da linha de montagem monótona, num frete lento e excruciante. Sem personagens empáticas, assiste-se indiferentemente ao destino de meia dúzia de Zé ninguéns às mãos da contorcionista desgrenhada com pouca vitamina D. Depois disto, o realizador de Splinter (2008) mudou-se para a televisão. 

The Grudge 3 2009

O Último Destino 3, de James Wong

O realizador e co-argumentista do original regressa às mesmas funções, tendo saltado o segundo, e o resultado não poderia ter sido mais enfadonho. Aquele que viria a destruir a carreira com Dragonball Evolution (2009) recorre ao facilitismo dos personagens que fintam a morte saberem do que aconteceu ao voo 180 do primeiro filme (2000) e de agirem em conformidade, começando com uma premonição e seguindo a ordem pré-estabelecida das mortes. Desta vez, tudo começa numa montanha-russa, mas estar ligada ao piloto automático não ajudou. Mary Elizabeth Winstead continua o seu percurso infeliz pela sétima arte e os outros RIP.
Final Destination 3 2006

O Homem Duplicado, de Denis Villeneuve

O Homem Duplicado não é um dos mais interessantes trabalhos do Nobel da Literatura José Saramago. Há um alheamento face à matéria e, consequentemente, aos personagens e situações narradas, como se o escritor tivesse uma ideia genérica do que pretendia, mas não se sentisse em território sólido ao concretizá-lo. Não sendo uma projecção directa do livro, a adaptação de Javier Gullón sofre do mesmo mal: os personagens, na sua errância e indefinição, não são cativantes e o distanciamento da câmara transforma-os em massas soltas, disformes, incapazes de conectar com o público através da sua aparente incoerência. É certo que, no final, se entende que dificilmente poderia ter sido de outro modo, mas tal não obsta a que o prazer de assistir seja severamente cerceado.
O romance (2002) foi traduzido para inglês (2004) sob o título The Double, (O Duplo), que é simultaneamente o nome de um filme de Richard Ayoade (2013) e do conto de Fyodor Dostoyevsky (1846) em que se baseia. Eventualmente vítima da saturação do tema, onde o duplo, por exemplo, nunca escapa a parâmetros fixos de extroversão e cobiça pela mulher do outro, O Homem Duplicado/ Enemy (2013) tenta camuflar a sua natureza através de um andamento soporífero, quase estático, que se quer misterioso na sua frieza, mas se revela demasiado amorfo para prender a atenção.
Ao contrário do livro, o filme vai ziguezagueando por pistas que indiciam uma realidade dissociativa por parte do protagonista, abrindo a frincha a uma possível vida dupla que, despoletada pelo stress, desencadeia nele a ideia de duas existências separadas. Nesta perspectiva, o adúltero, a entreter o conceito de outro para sacudir a culpa de deixar uma mulher grávida em casa, convence-se de que há, de facto, um duplo e decide matá-lo (numa lógica de Pesadelo em Elm Street, o que se mata num sonho, morre no sono), de modo a iniciar um novo ciclo de felicidade (e fidelidade) com a esposa. As principais pistas encontram-se na fotografia que ambos possuem e nas palavras da mãe, daqui se partindo para a conclusão de que a namorada é, afinal, amante, e que esse apartamento onde a electricidade é poupada em excesso é onde se encontra com ela e não onde reside. A aranha é o símbolo para compromisso: a palavra-chave é teia.
Curiosamente, O Duplo de Richard Ayoade vai também beber a Saramago, num ponto que ficou ausente em Dostoyevsky e foi ignorado por Gullón: o carácter cíclico do processo de identificação e morte do duplo. No livro, Saramago nunca intui que o homem e o seu duplo são um só. Pelo contrário, trata ambos como indivíduos separados, vivendo vidas próprias, e um dia um deles descobre ter um sósia. A existência desse homem apenas fisicamente idêntico desperta-lhe a curiosidade e o processo de gato-e-rato tem início. Apenas no epílogo, pelo surgimento de um segundo sósia, se instala a dúvida. Mas, nem aí Saramago dá parte de fraco: a sua explicação poderá ser, alternativamente, de física quântica. Isto é, duas pessoas iguais não podem conviver no mesmo espaço-tempo, pelo que uma será eliminada.
Num aparte, cabe mencionar que a ideia do duplo já foi objecto de tratamento diverso em outros romances adaptados ao cinema, nomeadamente Fight Club (1999) e O Fio do Horizonte (1994). No primeiro, um filme de David Fincher baseado no livro de Chuck Palahniuck, o duplo aparece com aspecto diferente (ao próprio, não aos outros) e tem o intuito de concretizar intenções recalcadas do protagonista. No filme de Fernando Lopes, baseado no romance do lusitaliano António Tabucchi (1986), um patologista procede à autópsia de um jovem que reconhece como ele próprio, trinta anos mais novo, e inicia uma investigação particular.
Tendo em conta a diferença de ritmo e de intensidade face ao surpreendente Prisoners (2012), O Homem Duplicado também parece realizado por um duplo de Denis Villeneuve, apostado aqui numa ambientação atmosférica, de cores desmaiadas e macilentas, uma pegada onírica atrás da outra, onde Jake Gyllenhaal põe o pé duas vezes e Mélanie Laurent e Sarah Gadon alternam os seus, todos de olhar introspectivo perdido no vazio, só Isabella Rossellini parece ter os dois bem assentes na terra. A banda sonora, a apostar num minimalista e opressivo uso do oboé como instrumento solista, é da dupla Danny Bensi e Saunder Jurriaans, também conhecidos pelo nome artístico Stenfert Charles, que desde 2010 já musicaram dez filmes (incluindo Marcy Martha May Marlene, 2011) e a sua banda, Priestbird, conta cinco álbuns editados. O filme abre com uma citação de Saramago à qual, incompreensivelmente, não é atribuída autoria (O caos é uma ordem por decifrar), mas pode ler-se na contracapa do romance.
Enemy 2013

Escape From Tomorrow, de Randy Moore

Randy Moore, um homem com problemas ou um realizador sem talento. Só se conseguiu formar na terceira escola de cinema que frequentou e, na primeira visita que fez ao Disneyworld com consorte e descendentes, começou a recordar as viagens ao local da sua infância, onde o pai residiu depois do divórcio, e um comentário da esposa, russa de ascendência e enfermeira de formação, sobre o espaço de fantasia de Walt Disney ser pior do que a ala psiquiátrica do hospital onde trabalha, conduziu-o a um mês de escrita de um guião que se construiria sozinho em meia hora.
Antes de guinar rumo à estupidez, Escape From Tomorrow é uma viagem surrealista que não desdenharia parentesco a David Lynch mas, a partir do ponto mencionado, desmorona numa inconsequente alucinação que nem o recurso a técnicas de guerrilha (as filmagens decorreram em dois parques de diversões da Disney sem o seu conhecimento destes) salva da nulidade.
O enredo segue um dia de passeio de uma família de quatro pelo Disney World, irritante nos seus traços humanos e estéril nos seus elementos sobrenaturais, com pontas soltas e más representações, cuja única atracção assenta no local de rodagem e no secretismo da mesma. Se o cenário fosse um parque inventado, construído em estúdio ou desenvolvido em computador e projectado em green screen, não haveria absolutamente nada a destacar deste aborrecido episódio da Quinta Dimensão sobre uma vítima de febre felina.
Por fim, cabe referir que a Disney preferiu ignorar o filme em vez de processá-lo, incluindo-o no seu A a Z como uma película de culto filmada subrepticiamente no Disneyworld e na Disneyland. Como nota positiva, a excelente banda sonora do polaco Abel Korzeniowski, do qual se elogiam igualmente as partituras de Copernicus Star (2009), W.E. (2012), Romeu e Julieta (2013) e a mais recente variação a Metropolis (2004). Recomenda-se a escuta em disco, dispensando-se a perda de tempo a nível visual.
Escape From Tomorrow 2013

Madeo, de Bong Joon-ho

Drama familiar sustentado por uma história policial, o candidato sul coreano aos Óscares 2010 encontra o realizador Bong Joon-ho entre o sucesso de The Host (Gwoemul, 2006) e a internacionalização de Snowpiercer (2013). Quando um débil mental de memória intermitente é acusado do homicídio de uma jovem, cabe à mãe dele, face à indiferença da polícia e à ineficiência do seu advogado, descobrir a verdade. 
O realizador alinhavou a trama em redor da actriz Hye-ja Kim, processo iniciado ainda antes de dedicar-se a The Host, e entregou o esboço ao quase estreante Eun-kyo Park para que o desenvolvesse num guião coeso. Madeo, palavra que soa como mãe e homicídio em sul coreano (e em inglês também: mother e murder), é um lento e progressivo trabalho em redor das personagens e das suas peculiaridades, mantendo o suspense apesar de demorar a arrancar. Vale pela tacteante e por vezes precipitada sensibilidade, pela qualidade da direcção de fotografia e pela introdução de elementos que distorcem a imagem que vamos criando dos intervenientes (por exemplo, descobre-se que a mãe tentou matar-se e ao filho, com veneno, quando a criança tinha apenas cinco anos, invocando dificuldades financeiras; fica a questão: terá esse evento provocado a deficiência cognitiva do filho?), mais ainda do que pelo mistério principal.
Madeo 2009

Drácula 3D, de Dario Argento

De um cineasta de muito moderado profissionalismo, chega mais um exemplo de senil amadorismo. Adaptação livre do clássico Drácula, aparvalhada e incorrigível, apenas capaz de inadvertidamente fazer sombra à satírica de Mel Brooks (Dracula: Dead And Loving It, 1995). Dario Argento parece petrificado na liberdades partilhadas com Jesús Franco e Roger Corman nos anos 70 e 80, tendo com ponto de honra a nudez da sua moderadamente feia mas ainda atlética filha Asia (Miriam Giovanelli também faz as honras), efeitos especiais cartoonescos (nomeadamente a bala que atravessa o céu da boca do chefe da guarda) retirados do caixote do lixo de Van Helsing (2004) e a inovação sem patente de segurar a câmara na ponta de uma vassoura para obter a medida exacta de oscilação e desfocado. Com os Argentos regressa o compositor Cláudio Simonetti, colaborador de Dario desde 1975, então parte do ensemble psicadélico Goblin. Thomas Ketschman e Rutger Hauer vêm pela esmola e não pelo brilho e Marta Gastini veio ao engano, assim como o público.
Dracula 3D 2012

Haunter, de Vincenzo Natali

Mesmo depois de misturar O Feitiço do Tempo (1986), Dark City (1997), Os Outros (2001) e Maníaco (1981) num único filme, Vincenzo Natali não consegue sair de dentro do Cubo (1997) e a sua carreira permanece em suspenso. Apesar de lidar com mistérios dignos de despertar curiosidade e trabalhar a fotografia com esmero, Natali perde-se na previsibilidade do desenvolvimento pedestre da narrativa e nenhuma das suas artimanhas funciona. Isso transforma-o numa das mais frustrantes promessas da sua geração de cineastas.
Sistemático, Natali insiste em mais um título de uma só palavra e num mistério com várias faces. Contudo, mais papista do que o Papa, acaba por tropeçar na própria esperteza e a emaranhar-se nas pontas soltas. O enigma de Haunter desenrola-se devagar e a primeira meia hora é intrigante, assistindo-se ao efeito máquina de lavar e a um fantasma impaciente, a fazer horas para recolher o seu lençol com furos para os olhos. Uma família revive o mesmo dia ad eternum, tendo apenas a filha adolescente consciência desse facto, para o qual procura respostas. Sons na canalização da casa vão conduzi-la na caça ao tesouro mas, quanto mais revelações, pior. Cada passo em direcção à solução é um passo para longe da lógica.
A descoberta de um livro de recortes leva-a à conclusão de que habita a casa de um serial killer e à necessidade de ajudar a próxima vítima, com a qual estabelece uma ligação simbiótica. Contudo, a resistência das diversas cores ao detergente é variável e é aqui que a tela esgaça. Primeiro, o número de convivas na reunião final, tendo em conta que há uma vítima por ano durante mais de meio século (o álbum começa em 1954), é desbotado, o assassino não tem um padrão metodológico (as jovens desaparecidas, as famílias inteiras que habitam a casa, o uso de monóxido de carbono não emula o método utilizado nos próprios pais) e parece saltitar entre o mundo dos vivos e dos mortos só porque sim. Ainda fazendo referência à morte dos pais, ficam por abordar todas as implicações jurídico-criminais desse acto e ainda a cronologia subsequente: o que aconteceu à criança e à casa, para que este continue a chamá-la sua?
Abigail Breslin, Peter Outerbridge e Stephen McHattie fazem o que podem, mas não podem muito contra as evidências de que Haunter é uma historinha de fantasmas superficial, onde nada foi pensado para além da rama e a direcção de fotografia acaba amputada pela escrita. A heroína acaba por ter toda a informação fornecida pela investigação da outra e, de um momento para o outro, passa de medrosa a destemida apenas porque a película está a chegar ao fim.
Haunter 2013

Os Escolhidos, de Scott Stewart

Os eventos descritos em Dark Skies (2013) já não eram novos quando o escritor Whitley Strieber esgotou escaparates com o bestseller Communion (1987), um relato não ficcionado (disse ele) sobre a sua experiência pessoal como vítima de rapto por extraterrestres, que teve uma sequela literária e uma adaptação ao cinema. Os primeiros estudos do género datam de 1923, onde Charles Fort, no livro Terras Novas, descrevia visitas extraterrestres com intuitos empírico-científicos sobre cobaias humanas. Desde então, a premissa tem sido desenvolvida em todas as direcções.
Dark Skies nada tem a ver com Strieber, Fort ou o ainda não mencionado caso de Betty e Barney Hill, datado de 1961, transformado em livro (Viagem Interrompida, 1966) e em telefilme (The UFO Incident, 1975). Nem sequer com a série homónima de 1996, que contava uma versão da História dos EUA onde o envolvimento de extraterrestres era preponderante. Dark Skies (2013) é apenas uma reciclagem básica e com sabor a pouco do caso de uma família dos subúrbios a braços com fenómenos inexplicáveis, de início semelhantes aos provocados por um poltergeist, que concluem tratar-se de encontros imediatos de grau pouco simpático.
Enquanto permanece uma incógnita que o filme não trará nada de novo, a realização segura e a escrita concisa de Scott Stewart vão entretendo mas, por ocasião da sobremesa, a desilusão é inevitável. Do elenco, destacam-se Keri Russell e J.K. Simmons, mas a pergunta que se coloca é: ao cabo de um século de experiências em humanos, o que é que ainda falta a estes seres mais inteligentes e avançados aprender sobre nós? No caso em apreço, a resposta é óbvia: não são mais inteligentes.
Como não podia deixar de ser, há espaço para mencionar o mais absurdo: se os extraterrestres atravessam portas e paredes (vemo-los fazê-lo), de que serve às vítimas reforçarem as janelas com tábuas? Pior: se os extraterrestres atravessam superfícies sólidas, porque é que, no clímax, perdem tempo a desaparafusar as dobradiças das portas, antes de entrarem? Pior: se os extraterrestres vêm de cima, porque é que o casal protagonista fica a guardar a porta da rua e manda os filhos para os quartos situados no primeiro andar da moradia? Atenção, ser produzido pelos responsáveis por Actividade Paranormal e Insidious pode ser esclarecedor, mas não é desculpa.
Dark Skies 2013

You’re Next, de Adam Wingard

Se é daquelas pessoas que bocejam quando vêem alguém fazê-lo, saiba que essa é a razão pela qual os assassinos de És A Seguir usam máscaras: para que não se sinta tentado a imitá-los na letargia deste slasher de baixo orçamento e qualidade inferior, pleno de interpretações sofríveis, shaky cameragore modesto e emoções baratas. Reunião de família em casa de campo transforma-se em campo de caça, solta-se o histerismo e poupa-se na originalidade. Uma das vítimas mostra-se mais voluntariosa do que o previsto, outras menos vítimas do que querem indicar, revelações escusadas ainda a procissão está no adro e, voilá, nem as máscaras impedem o bocejo.
Barbara Crampton (scream queen dos tempos de Re-Animator From Beyond) e Sharni Vinson são os nomes mais caros do elenco, sendo o resto constituído por um grupo de amigos que se acha talentoso apenas porque dão palmadinhas nas costas uns dos outros. Promiscuidade entre realizador, argumentista e alguns actores, que tanto participam nos projectos uns dos outros, como ainda se envolvem em projectos para fazerem em família, caso das colectâneas V/H/S (2012 e 2013) e The ABCs of Death (2012), onde até trocam de funções.
You’re Next 2011

The Imposter, de Bart Layton

Se há caso a que se adequa o epíteto de que a realidade é mais estranha do que a ficção é o de um argelino de sotaque francês que, com 23 anos, em Espanha, se fez passar por um americano oito anos mais novo, desaparecido quatro anos antes, e foi acolhido pela família que interrompeu o luto, durante um período de cinco meses, antes de um detective particular descobrir, pela análise das respectivas orelhas, tratar-se de um impostor. O caso atinge proporções tão bizarras que o documentário soa a embuste e o facto de ser rodado, em grande parte, com recurso a reconstituições, ainda o torna mais confuso.
Conhecido pela Interpol (e, depois deste episódio, pelo FBI) como O Camaleão, Fréderic Bourdan narra a sua versão dos acontecimentos, no monólogo que vai conformando os eventos, ora com o seu rosto voltado para a câmara, ora através de voice over, interrompendo-se apenas para que outros intervenientes tenham a palavra, nomeadamente os membros da família de Nicholas Barclay (desaparecido de sua casa no Texas em 1994, quando tinha 13 anos), a agente do FBI que tratou da transferência, o embaixador americano em Madrid e o inconformado detective que, até hoje, procura o corpo do petiz.
A história de O Impostor é inacreditável, não só porque envolveu um adulto confundido com uma criança, mas porque a mãe e os irmãos de um menino loiro, de olhos azuis e sotaque texano acolheram um moreno de olhos castanhos, sotaque francês e aspecto mais velho, apenas porque este se identificou como tal às autoridades espanholas e justificou as mudanças visuais e de comportamento com quatro anos de cativeiro numa rede de tráfico sexual.
Mas o filme não esgota aqui o seu mistério, quando, na recta final, já a burla descoberta, lança cobro de nova suspeita, desta vez sobre a participação da família acolhedora no desaparecimento do filho, o que é igualmente plausível, porque, como dizia Sherlock Holmes, quando se elimina o impossível, o que resta, por mais improvável, é a verdade. Afinal, se não tivessem culpa no cartório, como poderiam aceitar duas pessoas tão diferentes como sendo a mesma?
O documentário de Bart Layton é eficiente na criação do ambiente de estranheza e a direcção de fotografia sabe produzir ficção, com as reconstituições a demonstrarem um cuidado com o enquadramento para a manutenção da dúvida. Nesse jogo de esconde e descobre, a certeza não se obtém no final, obrigando o cinéfilo a conduzir a sua própria investigação, incrédulo de que aquilo a que assistiu fossem, efectivamente, factos.
The Imposter 2012

John Morre No Fim, de Don Coscarelli

Aventura sobrenatural sem pés nem cabeça, John Morre No Fim é um divertido regresso de Don Coscarelli, o mítico criador da quadrologia Phantasm, dez anos depois do seu último filme (Bubba Ho-Tep, 2002). O realizador confessou que o livro lhe foi proposto automaticamente pela Amazon, quando classificou um livro de zombies que tinha acabado de ler, e simpatizou com a sinopse e o título. O filme é descontraído, brincalhão e tem efeitos especiais de qualidade muito discutível, mas há ali amor à camisola e, por vezes, é quanto basta.
Juntamente com Coscarelli, Angus Scrimm (76 anos) regressa para um cameo, ele que desde 1979 é conhecido como o Homem Alto da saga Phantasm. Entre os fenómenos mais originais, encontra-se um bigode voador e um comprimido com asas de mosca chamado molho de soja (soy sauce, no original, tem mais musicalidade).
John Dies At the End 2013

Carrie, de Kimberly Peirce

Consta que, se não fosse a esposa ir buscar o manuscrito ao lixo e enviá-lo a uma editora, o livro que lançou a carreira de Stephen King nunca teria conhecido Guttenberg. Mesmo sem reverenciar a exageradamente camp adaptação de Brian DePalma (1976), a versão de Kimberly Peirce, pese embora ter sido a realizadora do premiado Os Rapazes Não choram (1999), para além de dispensável, tem todos os traços da escola Twilight, tão ausente de sentimento ou entrega como o Psico (1998) de Gus Van Sant.
Sem o menor empenho, Kimberly Peirce, apenas com dois filmes em 14 anos (Stop-Loss, 2008), aborda Carrie como uma não apreciadora do género de terror que tem de pôr comida na mesa. A atmosfera está toda errada e a culpa começa no elenco. Carrie é uma adolescente tímida e introvertida, subjugada em casa por uma mãe religiosa e na escola pelas colegas maliciosas. É só pensar na constituição frágil de Sissi Spacek (1976) e de Angela Bettis (TV, 2002) para entender o erro de escolher a duas vezes Hit Girl (Kick Ass I e II): não só a magreza cadavérica assusta mais do que ombros largos e cintura cheia, como Chloë Grace Moretz não gosta ou não sabe mostrar-se indefesa ou intimidada. Para jovens retraídos que adquirem gradativa confiança em si próprios através do controlo dos seus poderes telequinésicos, porta-se muito melhor Dane DeHaan em Chronicle (2012), num papel plagiado à própria Carrie. Quanto à mãe, Julianne Moore esforça-se visivelmente, mas falta-lhe perfil (ao contrário de Jodie Foster, a quem o papel foi oferecido primeiro ou, por exemplo, Mia Farrow, que é assim na vida real).
O filme abre com uma mulher que sabe a relação entre sexo e concepção, mas em pleno parto acha que as dores devem ser de um possível cancro (não diagnosticado), porque, aparentemente, ao longo dos meses precedentes não teve enjoos matinais nem desejos glutões, a barriga não dilatou e o cérebro esteve em pousio. A seguir, uma rapariga ensaboa-se com prazer no duche do balneário da escola e o corpo reage com o primeiro período menstrual, algo que ela desconhecia existir, porque não tem televisão, telemóvel, Internet nem amigos e a mãe é maluca; o seu histerismo é recebido com uma chuva de tampões (o estojo de primeiros socorros parece estar cheio deles, eventualmente mais absorvente do que pensos rápidos vulgares), e com o decorrer das cenas subsequentes percebe-se estar perante um nítido one trick poney, conduzindo a história com uma pressa despudorada, como se esta não passasse de lastro para chegar ao clímax, que o tempo tornou clássico, e onde os efeitos especiais deveriam brilhar.
Como vingança por ter sido proibida de ir ao baile, a bully mor do liceu decide verter um balde de sangue de porco sobre a cabeça de Carrie, durante a coroação do rei e da rainha, de esquema montado para que esta esteja no palco. O sangue acerta no alvo, o balde acerta no par, Carrie zanga-se e os seus poderes mentais entram em ebulição, levando tudo e todos pela frente, incluindo o casal anti-suíno. O que podia correr mal, corre, incluindo um banho de sangue em CGI e um nada natural derrame sobre Carrie que no seu rosto lembra, inadvertidamente ou por inspiração súbita da maquilhadora, algo próximo do Alex da Laranja Mecânica (1971), com exagerados cílios pintados num só olho.
Ao contrário de Sissi Spacek que, no filme original, sabia que poderes psíquicos provêm da mente e, portanto, permanecia estática e concentrada enquanto os danos iam reflectindo os seus desejos, Chloë Grace Moretz confunde-se e imita o Magneto dos X Men, gesticulando grotescamente para que os objectos mudem de lugar, esquecendo-se de estar a imitar Magneto quando junta caretas orgásticas à mímica. O resultado é tão medonho que deveria ter exigido refilmagens.
Do mau, há mais. Ao contrário do livro, onde Carrie matava a mãe interrompendo-lhe o batimento cardíaco durante tempo suficiente para que os órgãos falhassem, Brian DePalma apaixonara-se pela então avantgarde barra de íman na parede a servir de faqueiro, e Spacek, a despontar a piscadela de olho a Magneto que Moretz iria desbaratar, espetava-a com tudo a que tinha direito. No caso actual, a mãe é modista, pelo que acaba espetada por um enxame de tesouras… só que as tesouras que ficam suspensas no ar, um segundo antes de crucificarem a vítima, são muitas mais do que as que chegam ao destino. Desconcertante, esta súbita falta de adereços. E o que dizer de Carrie ter, por telequinese, destruído o ginásio, atirado gente à distância e parado um carro em pleno ar mas, depois de um banho relaxante, nem sequer ser capaz de arrancar uma faca das mãos da mãe…
Em suma, Carrie (2013) é um desperdício de remake. A realizadora não é capaz de transmitir o ambiente de medo vivido em casa e de vergonha na escola, indispensáveis à compreensão da personagem de Carrie e dos acontecimentos supervenientes, Chloë Grace Moretz não tem inocência nem fragilidade (e, em transe pós-porco, move-se como uma ridícula boneca desengonçada, cabeça inclinada para o lado e tudo, qual torcicolo), Julianne Moore tem a demência, mas não a maldade, Gabrielle Wilde e Portia Doubleday têm o sex appeal, mas os seus actos têm a consistência de papel higiénico absorvente, e Ansel Elgort acaba por fazer muito com o seu papel idiota de namorado de uma que aceita ir ao baile com outra. Stephen King, no livro, tinha um trunfo que as versões de cinema desperdiçaram: através dos pensamentos dos personagens, transformava-os em pessoas.  
Carrie 2013