Thursday, September 18, 2014

Raptadas, de Denis Villeneuve

No Dia de acção de Graças, duas famílias dividem um peru e perdem as filhas mais novas. O rapto é imediatamente investigado e um suspeito sai em liberdade. Um dos pais desconfia. Nada será como dantes. Duas horas e meia de coração na boca, a assistir ao desespero dos progenitores e ao progresso tenso da investigação, em redor de um drama que bate cada vez mais próximo da nossa própria porta. Com invulgar intensidade, tenacidade e coragem, o canadiano Denis Villeneuve (Incendies, 2010) conduz a audiência às escuras com um completo controlo da narrativa, dos actores e dos sentimentos dos personagens, através da desorientação, da dor e de atitudes irracionais, saltando por cima da desistência de uns e partilhando da obsessão dos outros.
Emocionante do primeiro enquadramento dos faróis traseiros de uma caravana com o pneu traseiro em mau estado até ao não figurado apito final, Raptadas revela-se um tour de force, uma força viva que devora a expectativa do público, na sua fúria de sentir e na lentidão com que reconforta. Não toma atalhos, não se conforma com a urgência de saber e sacrifica o público com a incerteza até este implorar, não se aguentando mais na cadeira. É um filme sobre tortura e que tortura. Mas não podia ser mais gratificante.
Sendo um filme que aborda o sofrimento, a inocência perdida e o tratamento de prisioneiros em situações extremas, todos os actores estão de parabéns pelo empenho, pelo esforço de reagirem ao indesejado pânico de perderem um ente querido para alguém vicioso, desde a agressividade de Hugh Jackman à inércia de Terrence Howard, passando pelo entorpecimento de Maria Bello e pela meticulosidade de Jake Gyllenhall, pelas mulheres fortes que, cada uma à sua maneira, Viola Davis e Melissa Leo voltam a representar. E, evidentemente, cumpre perguntar: quem é que, num dado momento da sua vida, não quis chegar a roupa ao pelo de Paul Dano?
Em relação à caracterização, fica por explicar a relevância das tatuagens do detective da polícia, uma cruz cirílica na mão e uma rosa-dos-ventos no pescoço, e o facto de piscar constantemente os olhos. Sendo que o símbolo mais visível costuma representar a ideia de recomeço, as pistas para o caso concreto terão, eventualmente, ficado no chão da sala de montagem, e muito se agradeceria ao guionista Aaron Guzikowski se trouxesse a lume um esclarecimento. Também poderá questionar-se a relevância de o pai que recorre à tortura ser caçador, ligando o facto à política de restrição do direito de posse de armas actualmente em debate. E, já que falamos em tortura, quem consegue indicar um teatro de guerra, envolvendo os EUA, onde estes não tenham recorrido à brutalidade metódica nos seus interrogatórios, ou à suspensão dos mais básicos direitos humanos dos seus prisioneiros? Fará assim tanta diferença a acção passar-se entre civis? Quantos espectadores não abandonarão o cinema concordando com esta forma de obter informações não fornecidas voluntariamente?
 
Por fim, o factor religioso, que paira no ar mas nunca é equacionado directamente: o anel de mação livre do detective, o pai carpinteiro (a profissão de Cristo) ter o auto-rádio sintonizado numa estação evangélica, a justificação para os raptos ser uma guerra contra Deus, transformando penitentes em demónios. Eventualmente forçado ao exagero no campo visual, mas raramente implicado nos diálogos, fica a dualidade do bem e do mal, do correcto e do errado. A moralidade dispensa a religião e é por isso que a temáticas e o seu simbolismo funcionam igualmente para o público beato e laico. Não esquecer, também, o título, subjacente ao qual está a ideia de que ninguém é livre, somos todos prisioneiros das nossas mentes e daquilo que as habita, condicionados pelo que acreditamos ou por situações a que fomos sujeitados. Como as vítimas de sequestro, cuja recuperação é, possivelmente, um trabalho sem fim. 
 
Prisoners 2013

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