No Dia de acção de Graças, duas famílias dividem um peru e perdem as filhas mais novas. O rapto é imediatamente investigado e um suspeito sai em liberdade. Um dos pais desconfia. Nada será como dantes. Duas horas e meia de coração na boca, a assistir ao desespero dos progenitores e ao progresso tenso da investigação, em redor de um drama que bate cada vez mais próximo da nossa própria porta. Com invulgar intensidade, tenacidade e coragem, o canadiano Denis Villeneuve (Incendies, 2010) conduz a audiência às escuras com um completo controlo da narrativa, dos actores e dos sentimentos dos personagens, através da desorientação, da dor e de atitudes irracionais, saltando por cima da desistência de uns e partilhando da obsessão dos outros.
Emocionante do primeiro enquadramento dos faróis traseiros de uma caravana com o pneu traseiro em mau estado até ao não figurado apito final, Raptadas revela-se um tour de force, uma força viva que devora a expectativa do público, na sua fúria de sentir e na lentidão com que reconforta. Não toma atalhos, não se conforma com a urgência de saber e sacrifica o público com a incerteza até este implorar, não se aguentando mais na cadeira. É um filme sobre tortura e que tortura. Mas não podia ser mais gratificante.
Sendo um filme que aborda o sofrimento, a inocência perdida e o tratamento de prisioneiros em situações extremas, todos os actores estão de parabéns pelo empenho, pelo esforço de reagirem ao indesejado pânico de perderem um ente querido para alguém vicioso, desde a agressividade de Hugh Jackman à inércia de Terrence Howard, passando pelo entorpecimento de Maria Bello e pela meticulosidade de Jake Gyllenhall, pelas mulheres fortes que, cada uma à sua maneira, Viola Davis e Melissa Leo voltam a representar. E, evidentemente, cumpre perguntar: quem é que, num dado momento da sua vida, não quis chegar a roupa ao pelo de Paul Dano?
Em relação à caracterização, fica por explicar a relevância das tatuagens do detective da polícia, uma cruz cirílica na mão e uma rosa-dos-ventos no pescoço, e o facto de piscar constantemente os olhos. Sendo que o símbolo mais visível costuma representar a ideia de recomeço, as pistas para o caso concreto terão, eventualmente, ficado no chão da sala de montagem, e muito se agradeceria ao guionista Aaron Guzikowski se trouxesse a lume um esclarecimento. Também poderá questionar-se a relevância de o pai que recorre à tortura ser caçador, ligando o facto à política de restrição do direito de posse de armas actualmente em debate. E , já que falamos em tortura, quem consegue indicar um teatro de guerra, envolvendo os EUA, onde estes não tenham recorrido à brutalidade metódica nos seus interrogatórios, ou à suspensão dos mais básicos direitos humanos dos seus prisioneiros? Fará assim tanta diferença a acção passar-se entre civis? Quantos espectadores não abandonarão o cinema concordando com esta forma de obter informações não fornecidas voluntariamente?
Por fim, o factor religioso, que paira no ar mas nunca é equacionado directamente: o anel de mação livre do detective, o pai carpinteiro (a profissão de Cristo) ter o auto-rádio sintonizado numa estação evangélica, a justificação para os raptos ser uma guerra contra Deus, transformando penitentes em demónios. Eventualmente forçado ao exagero no campo visual, mas raramente implicado nos diálogos, fica a dualidade do bem e do mal, do correcto e do errado. A moralidade dispensa a religião e é por isso que a temáticas e o seu simbolismo funcionam igualmente para o público beato e laico. Não esquecer, também, o título, subjacente ao qual está a ideia de que ninguém é livre, somos todos prisioneiros das nossas mentes e daquilo que as habita, condicionados pelo que acreditamos ou por situações a que fomos sujeitados. Como as vítimas de sequestro, cuja recuperação é, possivelmente, um trabalho sem fim.
Prisoners 2013
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