O Homem Duplicado não é um dos mais interessantes trabalhos do Nobel da Literatura José Saramago. Há um alheamento face à matéria e, consequentemente, aos personagens e situações narradas, como se o escritor tivesse uma ideia genérica do que pretendia, mas não se sentisse em território sólido ao concretizá-lo. Não sendo uma projecção directa do livro, a adaptação de Javier Gullón sofre do mesmo mal: os personagens, na sua errância e indefinição, não são cativantes e o distanciamento da câmara transforma-os em massas soltas, disformes, incapazes de conectar com o público através da sua aparente incoerência. É certo que, no final, se entende que dificilmente poderia ter sido de outro modo, mas tal não obsta a que o prazer de assistir seja severamente cerceado.
O romance (2002) foi traduzido para inglês (2004) sob o título The Double, (O Duplo), que é simultaneamente o nome de um filme de Richard Ayoade (2013) e do conto de Fyodor Dostoyevsky (1846) em que se baseia. Eventualmente vítima da saturação do tema, onde o duplo, por exemplo, nunca escapa a parâmetros fixos de extroversão e cobiça pela mulher do outro, O Homem Duplicado/ Enemy (2013) tenta camuflar a sua natureza através de um andamento soporífero, quase estático, que se quer misterioso na sua frieza, mas se revela demasiado amorfo para prender a atenção.
Ao contrário do livro, o filme vai ziguezagueando por pistas que indiciam uma realidade dissociativa por parte do protagonista, abrindo a frincha a uma possível vida dupla que, despoletada pelo stress, desencadeia nele a ideia de duas existências separadas. Nesta perspectiva, o adúltero, a entreter o conceito de outro para sacudir a culpa de deixar uma mulher grávida em casa, convence-se de que há, de facto, um duplo e decide matá-lo (numa lógica de Pesadelo em Elm Street , o que se mata num sonho, morre no sono), de modo a iniciar um novo ciclo de felicidade (e fidelidade) com a esposa. As principais pistas encontram-se na fotografia que ambos possuem e nas palavras da mãe, daqui se partindo para a conclusão de que a namorada é, afinal, amante, e que esse apartamento onde a electricidade é poupada em excesso é onde se encontra com ela e não onde reside. A aranha é o símbolo para compromisso: a palavra-chave é teia.
Curiosamente, O Duplo de Richard Ayoade vai também beber a Saramago, num ponto que ficou ausente em Dostoyevsky e foi ignorado por Gullón: o carácter cíclico do processo de identificação e morte do duplo. No livro, Saramago nunca intui que o homem e o seu duplo são um só. Pelo contrário, trata ambos como indivíduos separados, vivendo vidas próprias, e um dia um deles descobre ter um sósia. A existência desse homem apenas fisicamente idêntico desperta-lhe a curiosidade e o processo de gato-e-rato tem início. Apenas no epílogo, pelo surgimento de um segundo sósia, se instala a dúvida. Mas, nem aí Saramago dá parte de fraco: a sua explicação poderá ser, alternativamente, de física quântica. Isto é, duas pessoas iguais não podem conviver no mesmo espaço-tempo, pelo que uma será eliminada.
Num aparte, cabe mencionar que a ideia do duplo já foi objecto de tratamento diverso em outros romances adaptados ao cinema, nomeadamente Fight Club (1999) e O Fio do Horizonte (1994). No primeiro, um filme de David Fincher baseado no livro de Chuck Palahniuck, o duplo aparece com aspecto diferente (ao próprio, não aos outros) e tem o intuito de concretizar intenções recalcadas do protagonista. No filme de Fernando Lopes, baseado no romance do lusitaliano António Tabucchi (1986), um patologista procede à autópsia de um jovem que reconhece como ele próprio, trinta anos mais novo, e inicia uma investigação particular.
Tendo em conta a diferença de ritmo e de intensidade face ao surpreendente Prisoners (2012), O Homem Duplicado também parece realizado por um duplo de Denis Villeneuve, apostado aqui numa ambientação atmosférica, de cores desmaiadas e macilentas, uma pegada onírica atrás da outra, onde Jake Gyllenhaal põe o pé duas vezes e Mélanie Laurent e Sarah Gadon alternam os seus, todos de olhar introspectivo perdido no vazio, só Isabella Rossellini parece ter os dois bem assentes na terra. A banda sonora, a apostar num minimalista e opressivo uso do oboé como instrumento solista, é da dupla Danny Bensi e Saunder Jurriaans, também conhecidos pelo nome artístico Stenfert Charles, que desde 2010 já musicaram dez filmes (incluindo Marcy Martha May Marlene, 2011) e a sua banda, Priestbird, conta cinco álbuns editados. O filme abre com uma citação de Saramago à qual, incompreensivelmente, não é atribuída autoria (O caos é uma ordem por decifrar), mas pode ler-se na contracapa do romance.
Enemy 2013
No comments:
Post a Comment