Consta que, se não fosse a esposa ir buscar o manuscrito ao lixo e enviá-lo a uma editora, o livro que lançou a carreira de Stephen King nunca teria conhecido Guttenberg. Mesmo sem reverenciar a exageradamente camp adaptação de Brian DePalma (1976), a versão de Kimberly Peirce, pese embora ter sido a realizadora do premiado Os Rapazes Não choram (1999), para além de dispensável, tem todos os traços da escola Twilight, tão ausente de sentimento ou entrega como o Psico (1998) de Gus Van Sant.
Sem o menor empenho, Kimberly Peirce, apenas com dois filmes em 14 anos (Stop-Loss, 2008), aborda Carrie como uma não apreciadora do género de terror que tem de pôr comida na mesa. A atmosfera está toda errada e a culpa começa no elenco. Carrie é uma adolescente tímida e introvertida, subjugada em casa por uma mãe religiosa e na escola pelas colegas maliciosas. É só pensar na constituição frágil de Sissi Spacek (1976) e de Angela Bettis (TV, 2002) para entender o erro de escolher a duas vezes Hit Girl (Kick Ass I e II): não só a magreza cadavérica assusta mais do que ombros largos e cintura cheia, como Chloë Grace Moretz não gosta ou não sabe mostrar-se indefesa ou intimidada. Para jovens retraídos que adquirem gradativa confiança em si próprios através do controlo dos seus poderes telequinésicos, porta-se muito melhor Dane DeHaan em Chronicle (2012), num papel plagiado à própria Carrie. Quanto à mãe, Julianne Moore esforça-se visivelmente, mas falta-lhe perfil (ao contrário de Jodie Foster, a quem o papel foi oferecido primeiro ou, por exemplo, Mia Farrow, que é assim na vida real).
O filme abre com uma mulher que sabe a relação entre sexo e concepção, mas em pleno parto acha que as dores devem ser de um possível cancro (não diagnosticado), porque, aparentemente, ao longo dos meses precedentes não teve enjoos matinais nem desejos glutões, a barriga não dilatou e o cérebro esteve em pousio. A seguir, uma rapariga ensaboa-se com prazer no duche do balneário da escola e o corpo reage com o primeiro período menstrual, algo que ela desconhecia existir, porque não tem televisão, telemóvel, Internet nem amigos e a mãe é maluca; o seu histerismo é recebido com uma chuva de tampões (o estojo de primeiros socorros parece estar cheio deles, eventualmente mais absorvente do que pensos rápidos vulgares), e com o decorrer das cenas subsequentes percebe-se estar perante um nítido one trick poney, conduzindo a história com uma pressa despudorada, como se esta não passasse de lastro para chegar ao clímax, que o tempo tornou clássico, e onde os efeitos especiais deveriam brilhar.
Como vingança por ter sido proibida de ir ao baile, a bully mor do liceu decide verter um balde de sangue de porco sobre a cabeça de Carrie, durante a coroação do rei e da rainha, de esquema montado para que esta esteja no palco. O sangue acerta no alvo, o balde acerta no par, Carrie zanga-se e os seus poderes mentais entram em ebulição, levando tudo e todos pela frente, incluindo o casal anti-suíno. O que podia correr mal, corre, incluindo um banho de sangue em CGI e um nada natural derrame sobre Carrie que no seu rosto lembra, inadvertidamente ou por inspiração súbita da maquilhadora, algo próximo do Alex da Laranja Mecânica (1971), com exagerados cílios pintados num só olho.
Ao contrário de Sissi Spacek que, no filme original, sabia que poderes psíquicos provêm da mente e, portanto, permanecia estática e concentrada enquanto os danos iam reflectindo os seus desejos, Chloë Grace Moretz confunde-se e imita o Magneto dos X Men, gesticulando grotescamente para que os objectos mudem de lugar, esquecendo-se de estar a imitar Magneto quando junta caretas orgásticas à mímica. O resultado é tão medonho que deveria ter exigido refilmagens.
Do mau, há mais. Ao contrário do livro, onde Carrie matava a mãe interrompendo-lhe o batimento cardíaco durante tempo suficiente para que os órgãos falhassem, Brian DePalma apaixonara-se pela então avantgarde barra de íman na parede a servir de faqueiro, e Spacek, a despontar a piscadela de olho a Magneto que Moretz iria desbaratar, espetava-a com tudo a que tinha direito. No caso actual, a mãe é modista, pelo que acaba espetada por um enxame de tesouras… só que as tesouras que ficam suspensas no ar, um segundo antes de crucificarem a vítima, são muitas mais do que as que chegam ao destino. Desconcertante, esta súbita falta de adereços. E o que dizer de Carrie ter, por telequinese, destruído o ginásio, atirado gente à distância e parado um carro em pleno ar mas, depois de um banho relaxante, nem sequer ser capaz de arrancar uma faca das mãos da mãe…
Em suma, Carrie (2013) é um desperdício de remake. A realizadora não é capaz de transmitir o ambiente de medo vivido em casa e de vergonha na escola, indispensáveis à compreensão da personagem de Carrie e dos acontecimentos supervenientes, Chloë Grace Moretz não tem inocência nem fragilidade (e, em transe pós-porco, move-se como uma ridícula boneca desengonçada, cabeça inclinada para o lado e tudo, qual torcicolo), Julianne Moore tem a demência, mas não a maldade, Gabrielle Wilde e Portia Doubleday têm o sex appeal, mas os seus actos têm a consistência de papel higiénico absorvente, e Ansel Elgort acaba por fazer muito com o seu papel idiota de namorado de uma que aceita ir ao baile com outra. Stephen King, no livro, tinha um trunfo que as versões de cinema desperdiçaram: através dos pensamentos dos personagens, transformava-os em pessoas.
Carrie 2013