Monday, September 5, 2016

Holocausto Canibal, de Ruggero Deodato

   
Obsceno, maldito e perturbador são alguns dos adjectivos de que Holocausto Canibal foi alvo praticamente desde a estreia. A sua descrição de actos violentos foi considerada tão realista que Sergio Leone preveniu o realizador Ruggero Deodato de possíveis repercussões legais, o que viria efectivamente a ocorrer, com um processo judicial por filmar o homicídio dos actores que o obrigou a trazê-los ao tribunal para provar que estavam vivos (contratualmente, eles tinham de desaparecer por um ano, para aumentar a credibilidade do snuff). Controverso e polémico, sem dúvida, este é um filme que revolucionou a técnica da found footage e da shaky camera (apesar da steadycam – câmara-colete com contrapeso, para manter a imagem estável – existir desde 1975). É o segundo filme da trilogia canibal de Deodato (o primeiro é Ultimo Mondo Cannibale, de 1977), mas o subgénero foi iniciado por Umberto Lenzi em 1972, com Il Paese del Sesso Selvaggio).
Deodato diz que se inspirou nos vídeos de execuções das Brigadas Vermelhas e no sensacionalismo vs integridade jornalística, mas como se chega desse ponto de partida a a este ponto de chegada estica um pouco a corda. Apesar dos documentários sobre atrocidades estarem em voga com exposés do género Mundo Cão (1962), que receberam a alcunha shockumentaries (criticados, por exemplo, por Pauline Kael, que lhes acusou a apatia de não conjugarem a causa e o efeito, isto é, de se limitarem a mostrar, sem contexto histórico, imagens horríveis), é duvidoso que uma equipa de filmagens exibisse o comportamento exposto no filme dentro do filme de Holocausto Canibal, porque, ao criarem e participarem em vez de assistirem, não só estão a cometer crimes, como se colocam numa posição em que atraem a hostilidade do espectador: uma coisa é assistir a crimes anónimos e outra muito diferente quando estes são perpetrados pela própria equipa, os heróis tornam-se vilões. Mas, convém explicar.
Basicamente, a história de Holocausto Canibal centra-se na recuperação e exibição das bobinas cruas de uma expedição que desapareceu na selva amazónica e sabemos ter sido morta por uma tribo canibal. A primeira metade do filme dedica-se ao resgate, por um professor de antropologia e dois guias, na selva; a segunda, ao regresso a Nova Iorque e à descoberta do conteúdo das filmagens. E é aqui que a porca torce o rabo: o grupo eviscera uma tartaruga aquática gigante; aterroriza uma tribo de pigmeus, pontapeando e matando a tiro um leitão, queimando-lhes as casas de colmo e, de seguida, o realizador e a assistente têm sexo à vista de todos os aldeões, não se importando de serem filmados pelo colega; violam índias em gangbang e matam índios indiscriminadamente e sem provocação. Mesmo que tivessem sobrevivdo e regressado à civilização, a crueldade e sadismo demonstrados em câmara tornariam todo o projecto inviável, porque a resposta de qualquer distribuidor de cinema, canal televisivo ou da opinião pública seria, no mínimo, a indignação. Uma coisa é observar a barbárie de povos primitivos, outra é provocá-la e instrumentalizá-la. Eventualmente, Deodato aposta no exagero para fazer passar a sua mensagem, mas não é credível que uma equipa de filmagens fizesse o que esta fez, e esse absurdo contrasta com a ideia de cinema verité que pretende veicular. Se provocassem duas tribos para que se atacassem uma à outra, ainda vá; ou agissem sob o efeito de drogas ...
Quanto à opinião de que o filme é um comentário social à dicotomia entre civilização e primitivismo, cai por terra face à óbvia constatação de que não há senão hipocrisia nesta tentativa de moralismo, visto que o guião nada fornece sobre ambos. Holocausto Canibal reduz os americanos a brutos sádicos e excitados e os nativos da Colômbia a pigmeus aos saltos e a grunhirem. Concluir simplesmente que somos todos selvagens é uma justificação rasteira. A brutalidade, o racismo e o nível de crueldade ao matar, para as câmaras, seis animais (o objectivo seria preparar a mente do espectador para acreditar que o que mais tarde aconteceria entre humanos era igualmente real) demonstra quão repugnante é o projecto e o seu realizador, cujo filme anterior (filmado antes, mas estreado depois de Holocausto Canibal) é um thriller sádico pornográfico: House On The Edge of The Park (1980). Deodato é um realizador de exploitation reles e, para além da censurado, o filme foi banido em diversos países.
Independentemente da geral fraca qualidade concreta, há que reconhecer, porém, que foi percursor de um género de que o século XXI parece relutante em engavetar: o found footage. Daniel Myrick e Eduardo Sánchez passaram por grandes génios da abordagem clandestina, mas O Projecto Blair Witch (1999) não inovou nada. Não só o filme The Last Broadcast (1998) se lhe antecipou um ano, como manter os actores na ignorância sobre o guião, mandá-los esconderem-se durante um ano e apresentar a footage como verdadeira foram técnicas implementadas por Ruggero Deodato duas décadas antes da vulgarização das mesmas.
Riz Ortolani compôs uma banda sonora demasiado leve, que se evapora até nas cenas mais violentas, acompanhando violações e massacres com flores e borboletas. Não ignorando os méritos do compositor, não funciona. O título provisório foi Green Inferno, que Eli Roth aproveitou para o seu decepcionante remake/ homage (2013). As violações são tão mal simuladas que, entre nativos, os arremessos de um figurante tomam tanto lanço que tornam óbvio o fingimento. Apesar disso, a actriz Francesca Ciardi sugeriu a Carl Gabriel Yorke que tivessem sexo na mata para se desinibirem para a cena em câmara e, ao ser negada, já nem queria despir-se na cena propriamente dita (acedeu, depois de ameaçada pelo realizador em italiano). Lucia Constantini, assistente de produção, despiu-se para uma cena de ritual de infidelidade, quando não foi possível contratar uma prostituta local para o efeito (é óbvio tratar-se de uma ocidental, mesmo coberta de lama para disfarçar), uma cena de banho no rio contou com todo um bordel. Robert Kerman era um actor pornográfico (o clássico Debby Does Dallas encontrava-se no seu repertório) a tentar a sorte noutro género, mas regressou ao porno depois deste interregno frustrado. Há nus frontais masculinos e femininos. Os documentaristas são capazes de observar nativos sem serem detectados, apesar de mal escondidos; quando é preciso disparar, é cada tiro, cada índio (devem ser texanos). Foi abortada uma cena com piranhas. NSFW: uma tartaruga gigante decapitada e a casca aberta para mostrar as suas entranhas. Decapitações humanas. Apedrejamento de uma grávida e enterro do feto abortado. Várias violações, um empalamento e um desmembramento genital masculino.
Cannibal Holocaust 1980

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