Wednesday, January 26, 2011

O Cisne Negro, de Darren Aronofsky

Uma jovem bailarina no limiar da sanidade não aguenta o stress de ser escolhida para prima ballerina da Companhia a que pertence. A sua mente perturbada sucumbe à tensão e, de ataque de ansiedade em ataque de pânico, assistimos ao desagregar da sua personalidade. Cisne Negro descreve-se como um thriller psiológico, com o próprio realizador a traçar inspiração nos filmes de Roman Polanski Repulsa e O Inquilino, mas a imagem que se destaca da sua incursão pelo mundo do ballet é uma esquelética Natalie Portman com os braços a esvoaçarem dramaticamente e uma expressão desgraçada no rosto.

Depois de acompanhar a miséria de um wrestler de segunda categoria (O Wrestler, 2008), Darren Aronofsky esteve para dirigirThe Fighter (2010) e o remake de RoboCop (que a MGM adiou por dificuldades financeiras e um súbito desejo de fazê-lo em 3D), mas acabou por regressar a uma ideia antiga, baseada no conto O Duplo, de Dostoyevsky, que ele já ligara ao bailado O Lago dos Cisnes, de Tchaikovsky, por causa da dicotomia entre o Cisne Branco e o Cisne Negro. Entregou o argumento a Mark Heyman, que tinha sido seu assistente de realização em A Fonte (2006) e co-produtor de O Wrestler (2008), que viria a ser retocado por mais dois amadores.

Cisne Negro é um filme masoquista, concebido como uma manta de retalhos, a acompanhar o desgaste psicológico de Nina, bailarina introvertida, desde a sua escolha para Rainha Cisne até ao final da estreia do bailado. Os eventos tentam colar-se ao libreto do ballet, mas fazem-no de forma solta, chegando a esticar a credibilidade, por exemplo, com a referência ao príncipe a ser concretizada no director da Companhia, cujo apelido é Leroy, do francês le roy (rei e não príncipe).

Leroy acredita que Nina é um competente Cisne Branco, mas que terá de aprender a soltar a sua sensualidade, se quer transformar-se também no Cisne Negro, arquétipo mais adequado a Lily, outra bailarina da Companhia. Contudo, em vez de centrar nas duas o conceito de dualidade, Aronofsky inventa imagens avulsas de uma sósia de Nina, que surge em multidões e até no chorus line, que não é explorada para além do jogo visual óbvio. Estas e outras imagens querem-se perturbadoras, mas sente-se que estão apenas a encher chouriços, através de artifícios popularizados pelo horror nipónico dos finais dos anos 90 e disseminado entretanto por remakes cada vez mais duvidosos: arranhões nas costas, unhas arrancadas, shape shifters e os olhos dos retratos da mãe que a perseguem quando entra no estúdio desta. Muita forma sem conteúdo.

A esperada transformação de Nina em Cisne Negro, durante os ensaios, nunca chega a verificar-se, tanto mais que, de hirta e desassossegada, ela só se revela no próprio palco, sendo que a paranóia a leva a uma queda desprestigiante no primeiro acto e, convenhamos, por muito bem que feche o espectáculo em ovação, será duvidoso que possa considerar-se perfeita. A dança, aliás, não parece ser mais do que um mal necessário, já que, para o objectivo de Aronofsky, funciona de modo tão neutro como a luta livre para OWrestler.

Carrie, de Stephen King, terá sido outra clara influência. Numa fase inicial, quando se estabelecem as bases para a instabilidade, inadaptação e comportamento rígido da protagonista, a autoridade, austeridade e agressividade passiva da mãe são apontadas como responsáveis. Um ambiente familiar opressivo e castrador, que insiste em restringir a liberdade e a autonomia da filha pela infantilização do seu habitat e pelo isolamento claustrofóbico. Aliás, pedia-se mais subtileza neste ponto, para que a marca Carrie se esbatesse. Enfim, algumas amarras vão sendo cortadas por Nina ao longo do seu percurso, aliviando o espartilho, mas não era necessário massacrar o espectador com constantes reproduções de dilaceração física, o permanente desassossego era mais do que suficiente. Aqui, são os primeiros anos de Cronenberg que são explorados, e até um nadinha de Shynia Tsukamoto.

Por último, O Cisne Negro vai ainda buscar inspiração a Branca de neve E Os Sete Anões, porque Natalie Portman e Mila Kunis, enquanto bailarinas, parecem de palmo e meio. Isso não impede que ambas tenham treinado arduamente ou emagrecido drasticamente, nem que sejam menos excitantes quando os seus corpos se prestam ao desejo, mas a frieza e artificialidade da abordagem do realizador tolhe todo o calor que delas pudesse emanar. Cisne Negro não passa de charlatanice, do ponto de vista do objecto de estudo, já que as conclusões da tese foram adulteradas para servir a pretensão.

Antes que fique por mencionar, Natalie Portman está fabulosa como a porta estandarte e alma do filme. A câmara segue-a sem contemplações, sem privacidade, sem licença, e ela mergulha de cabeça no papel traumatizado por pressões e recalcamentos de infância, que culminam na alegria e terror se ser, pela primeira vez, cabeça de cartaz. O crescimento da personagem e a sua neurose são acarinhados por um trabalho de método, incansável, milimétrico. Mila Kunis, Vincent Cassel, Barbara Hershey e até uma apagada Winona Ryder podem estar iguais a si próprios, mas Portman está melhor.

Black Swan 2010


Chloe, de Atom Egoyan

Phillipe Blasband teve a ideia, Jacques Fieschi desenvolveu-a, Anne Fontaine realizou e o filme intitulou-se Nathalie, em 2003. Atom Egoyan, em crise criativa, financeira ou ambas, assinou o remake, que Erin Cressilda Wilson, por torpe ineptidão, misturou comAtracção Fatal e A Letra L. A guionista é conhecida pelo irreverenteA Secretária (2002) e pelo serôdio Pêlo: Um Retrato Imaginário de Diane Arbus (2006).

A esporádica nudez ondulante de Amanda Seyfried e a emproada de Julianne Moore tentam salvar Chloe da mediocridade, mas intensificam o mergulho. Os ambientes de cartilha, saídos do manual dos vídeos Playboy são piores do que as versões televisivas de Zalman King, os ângulos de câmara que não sabem se revelam ou ocultam, a iluminação de boudoir, a lingerie, as poses, tudo é tacanho. Quanto ao artifício sobre o qual se edifica todo o mistério, Não é preciso ter visto Nathalie para adivinhá-lo, de tão embaraçosamente previsível. Afinal, as pistas são óbvias e, convenhamos, fazem-se histórias de mistério há centenas de anos, é preciso mais para confundir e iludir uma audiência atenta. O adultério como móbil do crime é chapa mais do que gasta.

O arménio Atom Egoyan já foi responsável por trabalhos bastante interessantes, como Exótica (1994) e O Futuro Radioso (1997), masChloe está entre as suas piores entregas. Em vez de personagens enigmáticas, saem-lhe planas, maçudas, irritantes. A história é simples. Uma mulher suspeita da fidelidade do marido e contrata uma prostituta para se insinuar junto dele, deixando-se enrolar pelas narrativas que esta lhe faz das suas supostas incursões junto do marido dela. Assim rezava Nathalie. Chloe salpica-a de pós sáficos (Anne Fontaine referiu que queria esse ingrediente no seu filme, mas que as actrizes se recusaram) e a prostituta, depois da rejeição, deita-se com o filho adolescente do casal, numa reviravolta vingativa, o prolongamento de uma obsessão sem fundamento, estéril e incoerente. Chloe, que nas linhas iniciais se caracteriza de forma dominante, acaba a descontrolar-se como uma mimada instável. Durante todo o processo, a esposa é neurótica e o marido egocêntrico. O filho deles é de uma desconexão gritante: toca piano clássico, guitarra eléctrica e pertence à equipa de hóquei; manifesta desprezo pela mãe, veneração pelo pai e insegurança em relação ao sexo feminino. E não passa de um personagem secundário sem a menor relevância.

Se o anterior filme de Egoyan, Onde Está A Verdade? (2005), espreitava a homossexualidade masculina, Chloe vira-se para a feminina. Amanda Seyfried já tinha sido beijada por Megan Fox emO Corpo de Jennifer (2005) e Julliane Moore aproveitou para treinar o que viria a ser uma longa relação com Annette Bening em Os Miúdos Estão Bem (2010), mas em Chloe a ligação das duas é meramente oportunista. Comercialmente oportunista.

A esposa de Liam Neeson sofreu, durante as filmagens, um acidente de ski e morreu poucos dias depois. Na ausência do actor, o argumento sofreu alterações condicentes, mas ignoram-se quais. Para melhor, não terão sido. Mesmo quem não tiver percebido que toda a actividade do marido é somente vista através das descrições de Chloe, há-de convir que o desfecho é um cop out. Atracção Fatal(1987) no seu básico.

Chloe 2009


Monstros, de Gareth Edwards

A contrastar com as vulgares invasões extraterrestres de Hollywood,Monstros revela-se uma incursão inesperadamente diferente, umroadmovie pacífico, melancólico, discreto, que dá primazia ao factor humano e inadvertidamente põe o dedo na ferida da belicosa atitude e mentalidade americanas de disparar primeiro e perguntar depois.

Seis anos depois de uma sonda enviada pela Terra para o espaço ter voltado acompanhada, o território entre o Texas e o México foi interditado ao público por se ter tornado habitat de estranhas criaturas gigantes. Nas vésperas do período de desova destes seres, que ocorre no oceano e assim inviabiliza a passagem marítima entre a América Central e a do Norte, o director de uma revista norte-americana incumbe um dos seus fotógrafos de assegurar-se que a filha regressa ao país em segurança. Este, no México em trabalho, aceita a tarefa com contrariedade. Assim, tem início uma longa viagem de reconhecimento, através do território interdito.

Com um orçamento integral de 500.000 dólares, o inglês Gareth Edwards escreveu, realizou, editou e criou os efeitos visuais deMonstros. A produtora Vertigo Films sugeriu-lhe o actor Scoot McNairy e, como a ligação entre os dois protagonistas era muito importante para que a história funcionasse, contratou também a namorada deste, Whitney Able, pormenor que se articula deliciosamente com algumas passagens do enredo.

Monstros não é uma história de terror, nem sequer de ficção científica, pelo menos no sentido comum. Em muitas paredes mexicanas pode ler-se a questão quem são os monstros, afinal?, e a resposta é concludente: são os humanos que não sabem coexistir com o que é diferente e nem sequer tentam. Poucos minutos de observação de dois extraterrestres é suficiente para compreender que não são agressivos e, se não forem incomodados, nem notam a presença de pessoas. São estas que, com o seu medo natural, tentam contê-los e destruí-los. Por outro lado, é agradável ver um filme onde os heróis se encontram à mercê de mercenários armados (que deverão conduzi-los por território restrito, a troco de dinheiro) e em situação alguma são roubados, ameaçados, agredidos, nem a protagonista é alvo de olhares libidinosos ou mão indesejadas.

Surpreendente pela abordagem pouco habitual e pela condução sensível, Monstros merece um caloroso aplauso. E também porque as condições de filmagem obrigaram ao recurso de soluções de poupança que se provaram imaginativamente viáveis. A equipa consistiu num realizador e respectivo assistente, um técnico de som, só dois actores profissionais (e Whitney Able é estreante) e dois produtores executivos para tratarem da parte financeira. As câmaras digitais são vulgares e todas as noites os cartões de memória eram descarregados online para poderem ser reutilizados. O elaborado guião de Gareth Edwards foi atirado às urtigas pela necessidade do improviso (o orçamento era alérgico a grande parte das cenas) e os efeitos visuais criados num programa vulgar da Apple, que demoraram cinco meses a aplicar, em casa. É uma obra destemida, guerreira, um grito silencioso que ecoa muito mais longe do que poderia antecipar-se. Se os extraterrestres alguma vez nos invadirem, que sejam destes.

Monsters 2010


Mensagens Apagadas, de Rob Cowan

Mensagens Apagadas é um thriller absolutamente triste, com um argumento medíocre e representações débeis. Tem argumento de Larry Cohen e esse nome já valeu alguma coisa, mas os anos 70 já se esqueceram há muito. Tendo singrado no campo da blaxploitation e do terror de baixo orçamento, os seus filmes vendiam porque tinham humor, gore e crítica social. É especialmente associado às trilogiasIt’s Alive (1974/1978/1987) e Polícia Maníaco (1988/1990/1993). No início do deste século, vendeu dois guiões que lhe renderam algum do respeito perdido (Cabina Telefónica, 2002 e Ligação de Alto Risco, 2004), mas Cativeiro, de 2007, viu-se a braços com um boicote inesperado: a sua publicidade em outdoors foi considerada demasiado chocante e o género torture porn já estava em decadência, pelo que se reflectiu em fraca audiência. Mensagens Apagadas, como de costume no caso de Cohen, baseia-se numa ideia curiosa de abertura, que se perde num desenvolvimento previsível e maçador. Afinal, este é o criador de um filme intitulado Ambulância(1990), onde um veículo de transporte hospitalar cruzava a cidade em busca de vítimas para raptar e fazer tráfico de órgãos, que depois recebe um tratamento televisivo simplório.

Um professor de escrita criativa recebe duas mensagens de socorro de pessoas que são mortas de seguida. A primeira é ele quem apaga e a segunda é apagada sem ele saber como. Depois disso, acabam-se as mensagens, apagadas ou não, e há até uma chamada telefónica que lhe é feita para uma cabina telefónica perto de onde ele se encontra. Dois anos antes, ele vendeu a um estúdio de cinema um guião sobre um psicopata que matava vítimas ao acaso e a polícia suspeita do seu envolvimento. No meio de tanta previsibilidade, descobre-se que o guião que ele vendeu era plágio de um anterior, que um aluno seu trouxe à sua avaliação. Quem seria esse aluno? Só há dois potenciais culpados e talvez nem seja preciso escolher. Afinal, se a pista serve de alguma coisa, Matthew Lillard, o protagonista, entrava em Gritos (1996), thriller onde, em vez de um assassino, havia dois.

Para além de Lillard, o filme conta também com as participações de Deborah Kara Unger, Gina Holden e Chiara Zanni. As últimas destacam-se pela extrema magreza, digo, elegância etérea. Quanto ao realizador, Rob Cowan foi, entre 1984 e 1995, assistente de realização em onze filmes, mas desde então tem-se dedicado apenas á produção, sem um único blockbuster no currículo. Desconhece-se o que o terá feito sair da obscuridade, mas será mais do que um palpite prever que à mesma irá regressar.

Messages Deleted 2009


O Demónio, de John Erick Dowdle

O homem que pôs o mundo a ver mortos sedentos de socorro (O Sexto Sentido, 1999) recusa-se a reconhecer que também precisa desesperadamente de ajuda. O maior susto pregado por M. Night Shyamalan é também a sua grande lição: o sucesso é uma estrela cadente. Em apenas dez anos, a sua carreira foi reduzida a pó, encontrando, este ano, forma de se anular enquanto realizador (O Último Airbender) e autor (O Demónio).

A estreia de John Erick Dowdle foi através de um sub-produto da moda pseudo-voyeurista de câmara subjectiva (The Poughkeepsie Tapes, 2007), ao qual se seguiu a recolha das migalhas do bem sucedido filme de zombies espanhol [Rec] (2007), que os americanos se apressaram a copiar para a língua de Shakespeare (Quarentena, 2008). Apesar de ressentido por ter dirigido um remake de um filme de outrem e ninguém querer fazer um do seu, volta a provar que escolheu a carreira errada.

O Demónio (no original, mais correcto, O Diabo, porque demónios há muitos, mas Diabo só há um) é um manjar de mediocridade que poderia ter dado um snack mediano. Cinco pessoas aparentemente aleatórias entram num elevador, em simultâneo, e o mesmo interrompe a subida a meio do trajecto. A partir daí, desconfiam umas das outras e vão sendo mortas uma a uma, de cada vez que as luzes se apagam. Não há dúvida de que, se fosse um mistério de Agatha Christie, se ficaria de boa aberta com as conclusões (ou não tivesse ela usado do mesmo artifício no excelente Convite Para A Morte, publicado em 1939) mas, O Demónio dissipa as dúvidas à partida. O narrador revela que a mãe costumava contar uma história sobrenatural sobre o Diabo andar entre os vivos e a colher a alma dos viciosos através de pequenos jogos de gato-e-rato que começavam sempre com um suicídio.

Brian Nelson, argumentista, pegou no esboço de M. Night Shyamalan e desenvolveu a narrativa com este pressuposto. Ou seja, lá está o irrelevante suicídio, para começar, e os actores de pouco préstimo no elevador. Quando já se sabe quem é o assassino e que este é invencível, que surpresas podem esperar-se? Se responder não muitas, saiba que a resposta certa é nenhuma.

O suicídio da abertura conduz um detective da polícia ao prédio endemoninhado e toma algumas decisões duvidosas: quando cinco pessoas fechadas num elevador ficam reduzidas a três, a prioridade é evacuar o edifício. Pergunto: se a cena do crime é um cubo de metal sem ligação ao exterior, portanto, um ambiente contido e isolado, qual a correlação? Também a solução de resgate apresentada pelos bombeiros é estranhíssima. Estando o elevador encravado entre dois andares, a opção não é a de abrir as portas do elevador no andar acima e tentar recolher os passageiros pelo tecto falso, mas fazer um buraco numa parede de cimento para chegar… ao quê? Um elevador tem três paredes sólidas e um lado vazio, que comunica com os andares pela porta contida em cada andar. Ora, se não se faz o acesso através das portas, qualquer buraco que se faça numa parede do corredor vai dar a uma das paredes laterais do elevador. Por outras palavras, vai ser necessário abrir dois buracos, um na parede de cimento e outro na parede de ferro. Faz sentido?

And then there was none, termina o livro de Agatha Christie supra-mencionado. Aqui, não será bem assim, mas fica a questão: tanto espalhafato por causa destes anónimos? Não dava para incluir um político corrupto, um militar sádico ou um corrector de bolsa ou investidor imobiliário, culpados pelo tão actual colapso bolsista de 2008? Já se percebeu que o Diabo, quando não tem mais o que fazer, gosta de andar de elevador, mas não haveria alvos mais merecedores do que um condutor bêbado, uma chantagista, uma carteirista, um trafulha e um bruto do guetto?

O Demónio é adiantado como o primeiro filme de uma trilogia, intitulada Crónicas da Noite. O próximo versará sobre um júri que debate um caso de tribunal e o último irá aproveitar as ideias de Shyamalan para uma suposta sequela de Unbreakable (2000). Pela amostra, mais valia ficarem-se por aqui. Já que não vão a tempo de nem sequer começar.

Devil 2010


Enterrado Vivo, de Rodrigo Cortés

Não há muito a dizer sobre Enterrado Vivo para além de que é verdadeiramente inovador. Por uma única razão e por tudo o que lhe está subjacente: o protagonista foi enterrado vivo e o filme passa-se integralmente dentro do caixão. Estão de parabéns o realizador Rodrigo Cortés, o actor Ryan Reynolds e o argumentista Chris Sparling, por serem capazes de aguentar a curiosidade, o suspense e a crispação, com balizas tão estreitas.

Sem abandonar o cenário irrespirável do caixão, Enterrado Vivos cria suficientes situações para que os seus 95 minutos de duração nunca se arrastem, o que não é tarefa fácil. Ser enterrado vivo já não é novidade para a Sétima Arte, mas é a primeira vez em que personagem e público permanecem integralmente no mesmo sítio escuro e apertado, sem flashbacks nem cenas de exterior. Georges Sluizer (O Homem Que Queria Saber, de 1988, e A Desaparecida, de 1993) e Quentin Tarantino (Kill Bill Vol. II, de 2004, e último episódio da 5ª temporada de CSI) encontram-se entre aqueles que brincaram com o conceito, mas nenhum deles aí se aguentou o tempo suficiente para ficar sem oxigénio. O espanhol Rodrigo Cortés é homem de outra fibra e Enterrado Vivo, o seu segundo filme (O Concorrente, de 2007, foi o primeiro), é um autêntico tour de force. Com um único actor e iluminação proporcionada apenas por três adereços (um isqueiro, um telemóvel e um tubo de iluminação fluorescente), manteve a claustrofobia e a dúvida até ao fim. Será Paul Conroy realmente um camionista americano a transportar material de ajuda humanitária no Iraque, que sofreu uma emboscada e aguarda salvamento ou resgate?

Ryan Reynolds é um caso de respeito. Ninguém esperava muito do protagonista de Van Wilder: Sempre A Abrir (2002), mas o jovem comediante que acaba de se tornar o Lanterna Verde (2011) tem-se portado como Flash durante toda a carreira. Meteu o pé na acção, com Blade Trinity (2004) e Wolverine (2009), no terror comAmityville Horror (2005) e de resto equilibra a comédia (A Proposta, 2009) e o drama (Adventureland, 2009) o melhor que pode. Em 2007, já aguentara um filme às costas (Nines), mas nada com a dimensão de Enterrado Vivo.

A fazerem companhia ao desorientado, assustado e nervoso prisioneiro, estão algumas vozes para as quais telefona à procura de auxílio. Uma delas é a de Samatnha Mathis, que interpreta a esposa; curiosamente, a actriz foi Barbara Jane Mackle no remake da autobiografia desta, a filha de um milionário enterrada viva em 1968, 83 Minutos Para O Amanhecer (1990). Stephen Tobolowsky é outro actor, que associamos unicamente a papéis odiosos, e aqui não é excepção; até como voz é irritante, num twist implacável que espelha bem o corporativismo norte-americano.

Fica apenas por esclarecer uma questão: se o filme se passa no Iraque, como é que uma chamada efectuada para o número das emergências americano, 911, é atendido pelos serviços do Estado do Ohio? Ele não teria de estar dentro desse Estado, para a linha ser canalizada para lá?

Buried 2010


Black Water, de David Nerlich e Andrew Traucki

Black Water interpreta-se melhor depois de assistir-se ao filme seguinte de Andrew Traucki, O Recife (2010). A continuidade do tema, uma história de sobrevivência australiana, com predadores subaquáticos, supostamente baseada em factos reais. O Recife tem um tubarão branco como predador e Black Water um crocodilo.

Três turistas na Austrália do Norte vão pescar num barco a motor e o pântano onde estacionam chama-lhes um figo. O barco é virado e o guia não vem à tona. Os três sobreviventes trepam a uma árvore que assenta na água e aí resguardam-se, enquanto entabulam planos de acção e observam os leves rasgos de ondulação criados por um possível crocodilo, que se imagina grande para poder ter revirado um barco sem esforço. O rio é opaco e, na maior parte do tempo, a única prova de que há perigo são ocasionais bolhas de ar à superfície da água.

O realismo é conseguido pelo trabalho dos actores e pelos cenários naturais, com alguns diálogos a reforçarem o que, de resto, não é mais do que um compasso de espera. É de realçar que um crocodilo não está no mesmo patamar do imaginário universal que um tubarão branco e que o assomar de uma barbatana dorsal provoca muito maior crispação do que uma lagartixa gigante completamente submersa.

Já antes do filme começar, quem se aventura nele já sabe ao que vai. Vítimas acossadas de um crocodilo gigante, sem terem para onde fugir, são comidas uma a uma, a menos que o bicho se sacie primeiro, o que nestes títulos nunca acontece. Mas, em vez de gato por lebre, receia-se que, pior do que uma história sobre uma criança a brincar com a comida, seja ficar a ver a comida arrefecer sem ninguém que brinque com ela. Metade da película sem o menor vislumbre do crocodilo é suficiente para esmorecer a sensação de ameaça que deveria, pelo contrário, crescer. A banda sonora ambiental de Rafael May é criativa, assente em violoncelo e em guitarras eléctricas distorcidas duas oitavas, mas não chega. Um filme sobre um crocodilo precisa de um crocodilo.

Admite-se que a primeira aparição do réptil é impressionante e justifica a espera, com o bicho a erguer atleticamente todo o corpo acima do nível da água, na tentativa de morder uma das sobreviventes, que se esticava num ramo alto, mas volta a desaparecer por novo período considerável. Diana Glenn e Maeve Dermody são razoavelmente bonitas e naturais, capazes de gerar tensão e nervosismo, ao que o estilo de documentário dos realizadores não é alheio. Os diálogos são simples e desmistificadores, preferindo até o silêncio a frases involuntariamente anedóticas. As mulheres não se preocupam com as unhas nem gritam por tudo e por nada, o que só conta a seu favor.

Até à recta final, o filme aposta na antecipação, sem esticar a corda uma única vez, o que se aceitava por basear-se ostensivamente em factos reais mas, subitamente, avança pelo descrédito quando o crocodilo se torna uma entidade diabólica. A dada ocasião, desmotiva uma vítima subindo à superfície e ficando a boiar à distância de meio metro dela, sem atacar. Noutra, abocanha-a e rodopia com esta debaixo de água (em imagens de contra-campo, vemos a vítima afundar e vir à tona, mas nunca rodopiar), mas a vítima é capaz de escapar apenas com uma mordida na perna. Finalmente, o crocodilo transporta uma das vítimas para a margem, sem lhe fazer mal nenhum, aí a abandonando com pernas e braços que lhe permitiriam fugir. Esse jogo de gato-e-rato desvirtua a credibiliade documental que Black Water se esforçara por recriar, porque não se espera do predador que reaja com requintes de maldade, característica demasiado irreal para se engolir.

Quanto à rodagem, a equipa filmou o enredo em pântanos situados a apenas 25 minutos de Sydney, tendo depois seguido para regiões mais interiores capturar imagens de crocodilos de água salgada, integrando ambas através de CGI. O crocodilo é verdadeiro, mas nunca esteve próximo dos actores. Se alguns dos defeitos de BlackWater foram resolvidos em O Recife, em Black Water já não foram a tempo. Também da Austrália, chegaria em 2008 Rogue, de Greg McLean, a despejar mais actores num pântano habitado por um crocodilo gigante, criado integralmente por computador. Apesar de contar com actores conhecidos como Radha Mitchell, Michael Vartan e Sam Worthington, é pior do que Black Water.

Black Water 2010


Saw 3D: O Capítulo Final, de Kevin Greutert

Depois de Saw VI ter encerrado satisfatoriamente a segunda trilogia de Gigsaw, surge uma sétima toma, desta vez filmada em SI-3D. Aluz verde chegou logo após a estreia de Saw V e o seu realizador, David Hackl, ficou-lhe associado, mas a duas semanas da rodagem, foi substituído por Kevin Greutert, responsável por Saw VI. Greutert preparava-se para filmar Actividade Paranormal 2 (2010) quando, por contrato, foi obrigado a desligar-se desse projecto e ingressar na sua estreia em 3D.

O fraco retorno de bilheteira de Saw VI obrigou a produtora a fechar a torneira antecipadamente e Patrick Melton e Marcus Dunstan, argumentistas da segunda metade da saga, optaram por condensar as ideias que tinham para Saw VII e Saw VIII num único filme e embrulhar, de uma vez por todas, a série.

É preciso, antes de mais, questionar a boa vontade com que Kevin Greutert chegou ao set, cheio de ideias para mudar o guião. A uma semana do início das filmagens, a mera noção era quase suicida, especialmente porque os cenários e adereços já estavam construídos e, neste caso, isso representava, no mínimo, onze elaboradas armadilhas. Por terra que estavam os seus sonhos de pegar na sequela do filme caseiro que assustara Steven Spielberg, Greutert devia questionar-se sobre o que poderia trazer de novo ao conceito mais estafado desde que, há seis anos, James Wan inventou Saw. E trazia consigo o estigma de ter gerado menos lucro do que os antecessores.

De Saw 3D, fica a desagradável sensação de ser mais do mesmo. Dividindo os tomos pelos que privilegiaram a ideia de um grupo com hipóteses equilibradas de fuga (especialmente Saw II e Saw V) e os que o transformaram num jogo individual com meros peões humanos (especialmente Saw III e Saw VI), o último capítulo ingressa no descrédito, porque se apresenta como o encerrar de todas as pontas e o esclarecimento de todas as dúvidas e não passa de mais um episódio requentado.

Sean Patrick Flanery, há duas décadas o Jovem Indiana Jonestelevisivo, é o alvo central da história, um escritor de livros de auto-ajuda que diz ter encontrado uma razão para viver ao ter sobrevivido a um teste do Gigsaw. Como vem a saber-se que isto é mentira, a personagem revela-se mal concebida: ficam por explicar as cicatrizes que tem no peito e porque, se é um aproveitador, a polícia não o denunciou como fraude: teria de haver vestígios de onde esteve prisioneiro, um leitor de cassetes com instruções, uma geringonça ameaçadora qualquer. E teria havido uma investigação policial ao sucedido. A brisa da lógica descobre a careca. E não parece admissível que, a haver alguém como este personagem, Gigsaw não o tivesse tratado como prioridade, enquanto ainda era vivo. A necessidade de ressuscitar um irreconhecível Carey Elwes também soa a desespero; ele foi vítima de John Kramer, não de Mark Hoffman, por isso a cena final serve apenas para aplacar os ânimos de quem começava a fartar-se de ver Costas Mandylor como o novo Michael Myers (Halloween).

Saw 3D não vale o preço dos óculos, quanto mais do bilhete. Monocromático, parece ter sido integralmente filmado em tons sépia, deixando pouco á imaginação de texturas ou relevo, sendo também económico em objectos lançados em direcção ao ecrã. É visualmente agressivo, com as armadilhas a serem brutais, mas vazias de emoção. E o facto de serem continuamente fatais retira a expectativa de sobrevivência às seguintes. Já se sabe que esse era omodus operandi de Hoffman, não parar quando a lição está dada mas, se não chega a construir-se o suspense, fica apenas a vulgaridade do torture porn. Sensaborão.

Saw 3D 2010