Subgénero do exploitation, o tema violação e vingança foi introduzido no cinema pelo sueco Igmar Bergman (A Fonte da Virgem, 1960) e tem proliferado desde então, com mais ou menos variações, e até com outras assinaturas famosas: Wes Craven (A Última Casa da Esquerda, 1972), Sam Peckimpah (Straw Dogs, 1971), Michael Winner (Death Wish, 1974), Abel Ferrara (Ms.45, 1981) Clint Eastwood (Impacto Súbito, 1983), Ridley Scott (Thelma e Louise, 1991), Joe Schlesinger (Olho Por Olho, 1996), Gaspar Noé (Irreversível, 2002), Quentin Tarantino (Kill Bill, 2003) e Kim Ji-woon (Eu Vi o Diabo, 2010).
Cansados de procurar novas vítimas, os estúdios norte-americanos voltaram a violar as mesmas (Takashi Ishii, em Freeze Me, 2000, já dera o alerta). Extinto o conceito de pousio, chegam os remakes: A Última Casa da Esquerda (2009), I Spit In Your Grave (2010) e Straw Dogs (2011), ensombrados que ficam pela dupla adaptação do primeiro tomo da trilogia Millenium, de Stieg Larsson: Os Homens Que Odeiam As Mulheres, em 2009 por Niels Arden Oplev e em 2011 por David Fincher.
Para matéria tão controversa, torna-se vital abordá-la de um ângulo que a justifique ou premeie, para que não descambe em pornografia ou total abjecção. Quanto a Straw Dogs (Cães de Palha, 1971), o realizador Sam Peckimpah adaptou o livro do escocês Gordon Williams (com o apoio do argumentista David Goodman) e acrescentou-lhe as cenas mais espinhosas. Peckimpah, alcoólico e irascível ao tempo das filmagens (chegou a sofrer de pneumonia durante uma noite de copos e teve de ser hospitalizado), pretendia um grafismo tal que a violação incluísse sodomia facilmente perceptível, e assim teria sido se a actriz Susan George não tivesse ameaçado demitir-se. Thriller psicológico, claustrofóbico no seu crescendo de desconforto e reconhecidamente acutilante no seu retrato da violência, foi recebido com polémica e banido em países como a Inglaterra, o que amiúde acontece com os filmes que se atrevem, sem complacências, a atravessar barreiras conservadoras.
Cães de Palha era visceral e directo na sua sistematização (um casal composto por um nerd e uma liberal estabelece-se numa aldeia da província e o comportamento ameaçador dos rústicos locais ameaça desde cedo a harmonia; isto culmina em duplo estupro e numa invasão ao domicílio que se transforma em banho de sangue), mas complexo na perturbadora e provocadora exposição aos efeitos dobullying, dos códigos de honra e das relações – a própria violação comporta o seu quê de ambiguidade moral, já que a vítima manifesta permeabilidade aos avanços do engatatão, por sentir a falta de atenção por parte do marido, demasiado absorto nas fórmulas matemáticas da sua profissão do que nas necessidades dela; só que, a esta ambígua e questionável violação, segue-se outra, por parte de terceiro, que é brutal e horrível. Em vez de sucumbir a este pesadelo, o argumento não deixa de confundir e baralhar. É que o marido nunca chega a saber dos actos de natureza sexual em que a mulher tomou parte, mas, depois de se deixar humilhar em diversas situações, decide fincar o pé quanto a entregar um simplório a um informal pelotão de linchamento, que o acusa de ter atacado a filha de um deles. E novo horror se despenha sobre a sua casa. Por tudo isto, Cães de Palha é uma obra devastadora, um desafio chocante aos pilares da coexistência social, que abala as fronteiras do esquematismo entre o bem e o mal, com todos os personagens a pisarem algum tipo de área cinzenta, e obriga a elaborados malabarismos mentais de justificação e racionalização.
Rod Lurie, crítico de cinema feito realizador, decidiu refazer Cães de Palha, adaptando ele próprio o argumento. Qual a sua motivação, como pretende competir com um colosso danado como o original? Segundo o próprio, mantendo a estrutura narrativa, mas mudando-lhe a filosofia inerente, ou seja, contrapor à ideia de Peckimpah, de que o homem é instintivamente violento, a de que o homem é condicionado à violência quando empurrado ao extremo. Tirando a profissão do protagonista e a geografia, a adaptação é bastante fiel, alterando apenas a atitude em alguns diálogos e tendo a precaução de tirar a referida ambiguidade à atitude da vítima perante a violação.
O projecto chegou-lhe às mãos pelo amigo e co-produtor Marc Frydman, porque os direitos de autor da Miramax estavam a expirar, mas diz que foi Dustin Hoffman, protagonista do original, que o impulsionou, ao sintetizar Cães de Palha num western. Lurie é um nome que se associa a três fracassos sucessivos (o filme O Último Castelo e as séries Na Linha de Fogo e Senhora Presidente) e a dois filmes curiosos (O Jogo do Poder, 2000, e O Renascer do Campeão, 2007), pelo que Straw Dogs seria uma prova de fogo. Foi ao forno e queimou-se.
Relativamente ao elenco, é curioso que o casal protagonista seja constituído por James Marsden e Kate Bosworth, que já tinham junto os trapinhos em Super-Homem: O Regresso, (2005), onde a sua relação era ameaçada pelo Homem de Aço; aqui, em vez de um justiceiro de collants, há Alexander Skarsgard, presença habitual como torre vampira e viperina em quatro temporadas de Sangue Fresco, série passada igualmente no sul dos EUA. Comparado a Skarsgard, Marstens é quase um anão, o que também lhe foi desvantajoso na adaptação dos X Men (2001), já que o seu Ciclopefoi obliterado pelo colossal Wolverine de Hugh Jackman. Fora deste triângulo, que inclui marido, mulher e violador nº1, o filme sai prejudicado pela caricatura de James Woods e pela figura de Dominic Purcell, cujo personagem deveria ser interpretado por um desconhecido, de maneira a fazer parte do cenário até intervir na acção. As restantes prestações são praticamente figurações, com o violador nº2 a nunca obter o menor realce.
Straw Dogs é desnecessário e muito inferior ao original. Quanto às alterações filosóficas que Rod Lurie queria introduzir, são irrisórias. Não se percebe, nesta versão em que a violação é exclusivamente indesejada, porque é que a vítima não conta ao marido ou se dirige espontaneamente à polícia, já que é uma feminista financeiramente independente. O maniqueísmo de que o Sul dos EUA é uma região sem lei não tem paralelo na realidade mas, mesmo que tivesse, o xerife do filme não faz parte da pandilha violadora, antes lhe sendo adverso, pelo que ela estaria segura na sua acusação. No original, a vítima guardava segredo, em parte pela vergonha de ter aberto a porta ao violador nº1 e não se ter oposto aos seus avanços. Noremake, isso não acontece, com ela a manifestar sempre asco à atenção dele, com a excepção da cena em que surge à janela do quarto de camisa aberta, cena que, uma vez mais, fazia sentido no original e não no remake.
A própria cena do estupro, que no original dava nós ao estômago do espectador, é agora um mero espectáculo de tímido voyeurismo, sem as nuances da representação de Susan George ou a exibição da nudez de Kate Bosworth, o que alargaria o espectro da sua fragilidade e exposição (a nudez indesejada é sinónimo de vergonha); além disso, violador nº1 e nº2 parecem estar em conluio, o que esvazia o personagem do violador nº1 de qualquer sentimento, ao contrário do que o realizador pretendia provar; e isto é ainda mais absurdo se tivermos em consideração que, no original, o violador nº2 só consegue levar a sua avante apontando uma caçadeira ao violador nº1, que genuinamente achava que a vítima estava interessada nele, pelas deixas que julgara receber da atitude permissiva dela.
Por todos os seus defeitos ao nível da adaptação do argumento, especialmente onde o realizador se vangloriava das alterações, e pela genérica inutilidade de criar uma obra menor à custa de um filme de culto, Straw Dogs vale apenas como curiosidade, ao jeito do Psico(1998) de Gus Van Sant.
Straw Dogs 2011
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