Outrora tão avassaladora como a de Godzilla, a passada de Pedro Almodóvar cada vez deixa uma marca menor no passeio do celulóide. Cineasta de culto que se internacionalizou com Mulheres À Beira de Um Ataque de Nervos (1988) e tem como obra maior Tudo Sobre A Minha Mãe (1999), parece ter trocado a estética suja e mal tratada dos seus primeiros sucessos, os viscerais Matador (1986), Lei do Desejo (1987) e Ata-me (1990), por um academismo desconcertante. Esquece-se, porém, de que há histórias que pedem aquele extremismo visual de sangue na guelra.
Almodóvar adaptou o romance Mygale, de Thierry Jonquet, publicado em 1995, que diz ter lido há cerca de 10 anos, período durante o qual trabalhou num guião que se foi naturalmente afastando do original, nomeadamente por influência de Les Yeaux San Visage (1960), de Georges Franju. Convém referir que Mygale trabalha diversas tramas de forma independente, que se tocam sem se cruzarem até ao final, onde todos os eventos se precipitam para a surpreendente revelação.Les Yeaux San Visage é uma história linear, cujos únicos pontos comuns são um cirurgião plástico e uma mulher cativa, sujeita a diversos transplantes de pele.
No fundo, A Pele Onde Eu Vivo é uma revisitação do fenómenoFrankenstein em formato Noiva. Tão complicado quanto a recriação de um corpo humano através de diferentes fontes parciais, também o é a aglutinação de um argumento que se quer diferente do original, quando este é absolutamente irrepreensível. Aqui, Almodóvar fracassa redondamente. Ao tentar fundir a história de horror ao seu melodrama típico, o cineasta faz alterações que estão longe de ser mera cosmética. O ritmo é irritante e as costuras da trama esgaçam por todos os lados. A sequência de eventos pedia uma completa reorganização, uma vez que as surpresas surgem aos tropeções, como acidentes de percurso, e as analepses travam a acção, como um novelo cheio de nós, impedindo que o enredo flua sem dificuldades. Se alguma coisa, o determinismo temporal só atrapalha.
Um cirurgião plástico tem uma mulher cativa num quarto da sua casa, de que apenas a governanta tem conhecimento. Na sua ausência, o filho da governanta visita-a e não tem boas intenções. O mistério da identidade da prisioneira vai ser o cerne da história, cuja origem obriga a retroceder seis anos, e mais alguns se quisermos abarcar o acidente mortal da esposa do cirurgião, onde o filho da governanta ia ao volante. Sim, este resumo tem os traços típicos de Almodóvar, o problema está no desenvolvimento e interligação.
As opções estéticas não ajudam. Assiste-se a uma plasticidade anticéptica de fria esterilidade e composição ausente que, a princípio, traz à memória Aftermath, uma curta-metragem de Nacho Cerdà (1994), que segue uma autópsia com direito a pausa para necrofilia. A direcção de fotografia de José Luís Alcaine é esterilizada e pouco apelativa, como se passasse lixívia sobre algo que se queria objecto de fúria incontrolável. Aliás, essa é a diferença entre Mygale e A Pele Onde Eu Vivo. Enquanto o cirurgião do livro age por vingança e tem prazer em assistir às brutais agressões a que a sua cativa é sujeita às mãos dos homens aos quais a prostitui, no filme a vítima é modelada com os traços da falecida esposa do cirurgião e ninguém sabe da existência dela. Logo aqui, torna-se incompreensível o comportamento do cirurgião, cuja vingança é acompanhada de algo que, à falta de termo mais apropriado, poderá ser classificado como amor. Esta estruturação de intenções contraditórias, de que apenas temos os factos, nunca é explicada, tanto mais que a expressão de António Banderas, a encarnar o cirurgião, é impenetrável. Mais expressiva é a cativa Vera (que no livro se chama, muito mais significativamente, Eva), numa interpretação de Elena Anaya como já não se lhe via desde Júlia e o Sexo (2001), onde o seu corpo desnudo era já uma gema, mas paravoyeurismo recomenda-se antes Habitación en Roma (2010).
A Pele Onde Eu Vivo não deixa de ser um filme intrigante, mas podia ter sido muito mais do que aquilo que oferece, uma telenovela surrealista de contornos negros, edificada numa não linearidade pouco apelativa e filmada em moldes clássicos que esvaem os sentimentos invocados de toda a sua intensidade ou lógica. Há algo de inerentemente errado neste filme, que se espalha como um cancro e obsta a que dele se tire maior partido. Coisas como a esposa do cirurgião se ter suicidado da mesma forma que a filha, o filho da governanta aparecer por casualidade ao fim de dez anos, ele que foi responsável pela condição de viúvo do cirurgião, a governanta e o filho serem emigrantes brasileiros mas actores espanhóis (que função cumpre essa nacionalidade, por trás do sotaque tão falso?), o fato de tigre, a necessidade de Vera ter o rosto da esposa do cirurgião, confundindo as intenções do dito, etc. Realizador desigual, Pedro Almodóvar está longe de assinar aqui um dos seus melhores trabalhos.
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