Em 1992, Stephen King publicou dois romances autónomos, cujas narrativas corriam independentemente uma da outra, mas se cruzavam num momento de telepatia durante o eclipse que escureceu simultaneamente ambos cenários. Terror psicológico no seu melhor, Dolores Clayborne foi dedicado à mãe e O Jogo de Gerald à esposa e às irmãs dela. Dolores Clayborne foi tristemente adaptado ao cinema em 1995 por Taylor Hackford, incapaz de instilar emoção aos personagens sonâmbulos, apesar do guião de Tony Gilroy. O Jogo de Gerald apresentava um desafio superior, razão provável para ter demorado tanto a ser adaptado.
Mike Flanagan tem criado um nome para si no nicho dos realizadores-co-argumentistas de terror, com Jeff Howard aajudá-lo a transpor Occulus (2013), Somnia: Before I Wake (2016) Ouija: A Origem do Mal (2016) e dois episódios de A Maldição de Hill House (2018), entretendo-se ambos actualmente na adaptação de Sei O Que Fizeste No Ano Passado(remake do filme de 1997), ainda sem realizador anunciado]. O Jogo de Gerald acaba por ter mais a ver com Hush(2016), que Flanagan escreveu com a namorada (entretanto esposa), em que uma surda-muda tentava sobreviver ao ataque de um serial killer dentro da sua casa no campo. Em O Jogo de Gerald, este e a mulher chegam à casa de campo para uma escapadela de fim de semana quando ele tem um ataque de coração e a deixa algemada à cama, a lutar pela própria sobrevivência enquanto um cão vadio se entretém a comer o cadáver e uma criatura de trevas a visita de noite. Stephen King, que nunca foi um mero escritor de sustos, colocou a protagonista (o livro mais valia ter-se intitulado Jessie's Escape) em constantes diálogos interiores com a versão puritana dela própria, uma boa amiga e a ex-psicóloga. O filme substitui estas duas últimas vozes pela do marido e a economia funciona, com Carla Gugino a fazer um brilharete e Bruce Greenwood a ajudar a cada passo. Kate Siegel, esposa do realizador, tem um pequeno cameo, ela que, em Hush, já tivera a oportunidade de, brevemente, partilhar o ecrã consigo própria. Henry Thomas, o Elliot de E.T. (1982), faz de pai em flashbacks. Mencione-se que a Netflix, no mesmo ano, estreou também a adaptação de 1922, outra história de King.
O Jogo de Gerald é a adaptação possível do romance híbrido, que liga a urgência da luta contra a morte por parte da protagonista com um lavar de roupa suja interior que lhe permitirá, finalmente, renascer como uma fénix, sem se esquecer da ligação ao eclipse que une a história à de Dolores Clayborne, menos evidente por não se sentir a necessidade de clarificá-la sem que haja intenção por parte da Netflix em readaptar esse livro. Há urgência na vontade de sobreviver para além das algemas que a prendem à cama de uma casa onde irá passar fome e sede até desfalecer numa morte agonizante, sem ninguém à vista para além de uma criatura fantasmagórica que a visita à noite e não deixará de ser esclarecida a contento. As soluções não são rebuscadas e, não se não se apoiando em óbvios jump scares, a narrativa vai-se alimentando da curiosidade da audiência até drená-la de qualquer relutância.
Gerald's Game 2017
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