Sem contar com o reino animal (Tubarão, Piranha, Orca Assassina), os serial killers cinematográficos catalogam-se em dois géneros: fantasistas e realistas. Freddy Krueger, Michael Myers e Jason Voorhees tomam de assalto o pódio sobrenatural, mas no de carne e osso, quem recebe o ouro não é John Ryder (Terror Na Auto-Estrada), Norman Bates (Psico), John Doe (Se7en), Jerry Blake (Padrasto Assassino) nem o casal Mickey e Mallory Knox (Assassinos Natos). Sobre eles, paira um filme de gelar o sangue, de uma honestidade brutal e de uma simplicidade grotesca, de John McNaughton. Henry – Retrato De Um Serial Killer (1986) é, nesse sentido, uma obra-prima. Frio, calculista, medonho, chocante, real, assim é recriado o percurso de um sociopata, Henry Lee Lucas, protagonizado por Michael Rooker. A mestria de McNaughton é tanto maior quanto as técnicas e artifícios que utiliza para expor o horror e a repulsa dos crimes, sendo que alguns são apenas escutados perante a encenação do resultado (com a vítima já morta) e outros são interrompidos antes da sua conclusão, que sabemos inerente. O Retrato do título refere-se à caracterização e complexidade da personagem, que se torna fascinante, porque, apesar de cruel e inumano, é um homem com o aspecto dos outros, que se perde na multidão e termina a película em liberdade, sem que o público encontre a compensação moral (a punição do criminoso) que necessita para deixar a sala de cinema e se aventurar nas ruas escuras que o cercam.
Henry – Retrato De Um Serial Killer é um filme perturbador e repelente. No outro extremo do espectro, está Neighbor, que, não deixando de ser repelente, é anedótico, amador e estúpido. Penoso pela sua esterilidade e inépcia, revela-se num completo disparate. Se há filmes que não são adequados a estômagos leves, este é-o apenas a crânios ocos.
Comecemos pelo título. Neighbor =Vizinha. Não faz sentido. A história é tão básica que não deixa sombra para dúvidas. Uma jovem que ninguém das redondezas viu antes (uma mãe, no jardim com a filha, chega a perguntar-lhe, de cenho franzido, se é da zona, ao que ela responde que não), dedica-se a saltitar de casa em casa, torturando e matando quem encontra no interior. Exemplo de cartilha de torture porn caseiro, Neighbor nem sequer pode equiparar-se aos dois célebres casos que elevaram o conceito a subgénero independente, Hostel e Saw. Ainda que Saw tivesse um argumento mais elaborado do que Hostel, ambos podiam, pelo menos, orgulhar-se de terem um estúdio competente a equilibrar as intenções de choque. Neighbor é um mero excremento, com isto comparando directamente Robert A. Masciantonio a Marco Fiorito, da produtora pornográfica brasileira MFXVideo, especializada em coprofilia e urofilia.
As inconsistências de Neighbor não se ficam por aqui. Para além da psicopata de serviço não ser vizinha de ninguém, ela saltita alegremente de vítima para vítima, que escolhe aleatoriamente, sem se preocupar com as provas que deixa nem com a possibilidade de ser apanhada. Depois da popularidade de séries como CSI, é absurdo assistir a uma assassina que anda descalça nas casas alheias, veste a roupa dos seus donos e toma banho nas suas banheiras, deixando despreocupadamente impressões digitais, fibras, fios de cabelo e células epiteliais por todo o lado. Quando, a dada altura, se corta num dedo, limita-se a colocar um adesivo, retirado da caixa de primeiros socorros da vítima.
Referidas que estão a desfaçatez do título e a improbabilidade de uma criminosa tão distraída estar à solta, tantos outros elementos serão contabilizados para deixar evidente que nada resultou neste filme. Primeiro, o facto de a psicopata não perder tempo em estudar os alvos, limita-se a entrar nos seus lares e a ser bem sucedida nos seus intentos. Pode ser um casal que já encontramos amarrado, uma idosa a seu cargo (a quem ela diz que tem alterado a medicação durante meses), uma adolescente que tem idade para morar com os pais ou um adulto que vive sozinho e alucina com cogumelos. Depois, o tempo absurdo que passa com as vítimas. Em todos os casos, pernoita e na situação mais demorada, mais do que isso.
Entre a realização e a montagem, há elementos que são aflorados e aos quais não é dado seguimento e situações que se limitam a acontecer, sem que sejam encenadas ou preparadas. No primeiro caso, temos a presença de um bloco de notas onde a assassina escreve compulsivamente apontamentos que nunca são vistos. No segundo, ela surge dentro de uma casa que mais tarde vemos ser de Don (a vítima mais detalhada, interpretada por um sósia de Ryan Reynolds) e começa a partir coisas e a escolher os instrumentos de tortura que vai usar, sem sequer saber se há alguém em casa que possa ouvi-la. Don acorda e está amarrado a uma cadeira. Estava na cave, sob o efeito dos cogumelos, e é torturado com um berbequim, que lhe inflige diversos buracos numa coxa e lhe extrai o dedo grande do pé. Quando a Vizinha decide fazer uma pausa para tomar café, ele opta por evadir-se. Para isso, nem precisa de soltar-se da cadeira, porque a fita-cola que o mantinha prisioneiro desapareceu milagrosamente.
O que poderia salvar um filme com estes buracos? Uma realização firme, actores capazes de produzirem a nota que lhes é pedida, efeitos especiais credíveis e uma montagem decente. Tudo isso estava esgotado. A realização de Robert A. Masciantonio é desprovida de mise-en-scéne e os actores gritam sem saberem revelar dor, pânico ou medo – especialmente America Oliva, aVizinha, que se dedica a um lamentável overacting, nítido de quem não sabe o que está a fazer. Num ritmo caótico, o seu rosto passa de vazio a divertido, a triste ou a confuso, enquanto debita as suas deixas sem o menor impacto e comporta-se como uma aborrecidacheerleader a quem pediram que recriasse alguns passos de umstoryboard, sem lhe terem sequer explicado o guião ou a personagem. Dispensando as aulas de representação de que claramente necessitava, a extensão do talento de Oliva limita-se ao peito de silicone que não exibiu (apesar de, no mesmo ano, o ter feito para o remake de Sexta Feira 13 e para a revista Playboy), ausência que se estranha ainda mais pela cena de duche não permitir o menor voyerismo, tão selectiva nos ângulos como um filme infantil. Até Brian DePalma, enquanto construía uma carreira de slashers de baixo orçamento, nos anos 70, sabia que algo muito mau podia melhorar com umas moderadas pitadas de exposição feminina.
Uma plástica ao nariz e ao queixo de America Oliva também teriam sido uma nota positiva, mas nem no campo dos efeitos especiais o filme capitaliza. São efeitos de garagem, quase todos baseados na aplicação de maquilhagem com latex, retirados de manuais para brincadeiras de Halloween. Um braço cortado que espicha sangue, próteses de borracha e o mais marcante momento em que a boca de uma jovem é cortada de orelha a orelha por uma serra de plástico, sendo que minutos depois a jovem grita e vemos que tem a boca incólume. O nome do técnico de efeitos especiais Vincent Guastini não ficará, definitivamente, para os anais.
Personagens superficiais, realização rasteira, montagem anárquica, actores imprestáveis, cenários exteriores que mudam constantemente de ricos a degradados (quando é suposto serem os mesmos), Neighbor é uma desilusão. Masciantonio percebeu a imbecilidade aos primeiros dailies e, face ao resultado que nem a si deve ter agradado, decidiu incluir, a meio do filme, um flashforwardque se revela inútil e um mero capricho, na prática uma alucinação de Don, a meio da tortura (ter-se-á lembrado do artifício ao assistir à versão uncut de A Descida, diferente da que defraudou o público americano). O próprio realizador surge em cena como repórter, em diversos noticiários televisivos, de chapéu, barba e uma indumentária muito pouco profissional. A Vizinha é outra que, apesar de surfar de casa para casa, nem sequer anda de mochila, mas consegue sempre roupas novas do seu tamanho, e basta-lhe olhar para uma máquina de costura para que uma peça de homem (homem esse que mora sozinho e é um desleixado, mas que tem uma máquina de costura em exposição no quarto onde dorme) que encontrou num armário se transforme em haute couture. Com esses modelos imediatos, pavoneia-se nas ruas, deixando as vítimas vivas em casa, e nunca se sabe onde vai ou porque o faz. É como o filme, que realmente não se sabe porque foi feito, como foi concluído ou quem poderia apostar em distribuí-lo. No meio de tanta pobreza, a banda sonora do compositor Kurt Oldman nem sequer se escuta.
Neighbor 2009
No comments:
Post a Comment