Uma América do Norte rebaptizada concede, por ano, uma janela de doze horas de liberdade aos seus constituintes para que cometam impunemente os crimes que entenderem, legitimando a sede de sangue do cidadão comum. Durante este período, não há intervenção policial nem responsabilização, pelo que se convida à participação generalizada. A efeméride chama-se Purga e destina-se ao ajuste de contas directo, seja para abater o patrão ou a esposa adúltera, como simples escape, para furar o balão da raiva acumulada, gastando a munição em desconhecidos. A alternativa é trancar-se em casa e esperar pela manhã.
Esta premissa traz à memória filmes de caçadores de mendigos, como Hard Target (1993) e Surviving The Game (1994) ou aventuras pós-apocalípticas sem lei, como Mad Max (1979) ou Cherry 2000 (1987), mas, afinal, a Purga, propriamente dita, reduz-se ao pano de fundo de uma invasão residencial por sociopatas, tão próximos de The Strangers (2008) que até usam máscaras ou, indirectamente, Vacancy (2007). Se atentarmos na mítica frase de Patrick Swayze, “Because we live here”, até está próximo de Amanhecer Violento (1984). Em vez da ausência institucional de polícia, podíamos ter uma moradia em local isolado, a ser assaltada por meliantes violentos e o resultado seria idêntico, os de dentro a defenderem o forte e os de fora a criarem o pânico a cada investida.
Depois de Sinistro (2012), o terror dá uma segunda oportunidade a Ethan Hawke. Taking Lives (2004) e Daybreakers (2009) já lhe tinham preparado o terreno, mas as comparações inclinar-se-ão para o remake de Assalto À 13ª Esquadra (2005), escrito pelo mesmo James DeMonaco responsável pelA Purga. Em muitos aspectos, trata-se de uma readaptação do filme de John Carpenter (Assalto À 13ª Esquadra, 1978), agora com civis em vez de polícias. No caso de Assalto À 13ª Esquadra, uma esquadra fora de mão, em último dia de funcionamento, recebia um hóspede inesperado e os membros de uma gang cercavam o edifício, decididos a resgatar o prisioneiro e a matarem quem se lhes metesse no caminho. NA Purga, uma família pacífica barrica-se em casa, mas acaba por acolher um indivíduo ferido que lhes entra pelos portões; o grupo que o persegue está decidido a entrar na casa para reavê-lo, custe o que custar. Ethan Hawke, o polícia decidido a enfrentar os assaltantes de Assalto À 13ª Esquadra, é aqui o pai de família, disposto a defender os seus de quem quer purgá-los.
Relativamente a James DeMonaco, há que elogiá-lo pelo guião de O Negociador (1998) e ridicularizá-lo pelo de Skinwalkers (2006). Ao encarar A Purga, e não obstante a bola curva que se revela a questionabilidade moralizadora irrealista do conceito, convém reduzir o filme ao que realmente é: uma noite de tensão entre o colectivo lobo mau e os cinco porquinhos, num braço de ferro salteado de peripécias para identificar o público com os protagonistas, perante o inesperado e traumático evento nocturno. No que concerne à gestão do suspense, nada há a apontar, é tão milimétrico que permite fazer vista grossa à previsibilidade da história. Por exemplo, quando o grupo de encapuçados surge vestido a rigor, vem imediatamente à memória que os vizinhos dos protagonistas se reuniram numa festa, apesar de terem negado haver uma. Já tinha ficado estabelecido que estavam incomodados pela recente riqueza, exteriorizada em renovações à casa, da família-alvo se dever aos sistemas de segurança que vendera por todo o bairro. Seriam, então, os vizinhos a fazerem uma visita para, passe o eufemismo, testarem o andar modelo? Que outra razão poderiam estes engalanados ter para esconderem o rosto, numa noite em que o próprio Governo incita à brutalidade? Quando o líder da alcateia retira a máscara e se revela um estranho, imaginei ali uma oportunidade perdida, mas estava apenas a antecipar-me.