Abby Pierce, uma menina de oito anos do Michigan, enviou ao fotógrafo nova-iorquino Nev Schulman, de vinte e três, uma pintura baseada numa fotografia dele. Nev ligou-lhe a agradecer. Antes que se desse conta, tinha adicionado à sua conta do Facebook Abby, a mãe dela, Ângela, e a meia-irmã, Megan, uma cantora e modelo de dezanove anos com quem entabulou uma relação mais íntima, através da Internet e telefone. Nev, o irmão Ariel e o amigo Henry Joost vivem e trabalham juntos, na área do audiovisual, pelo que foi natural para todos que os eventos fossem filmados desde o primeiro momento. E se tenham sentido compelidos a continuar, mesmo quando os contornos da história se tornaram menos claros.
Depois de apanhar Megan numa primeira mentira, Nev começa a reavaliar toda a relação idílica entretanto construída ao longo de meses. Enredado nas dúvidas de uma teia de enganos, decide confrontá-la, longe de imaginar o que iria encontrar na pequena cidade do interior rural do Michigan onde mora a denominada família Pierce. O mistério é desvendado, mas tem o seu preço.
Muitas vozes têm duvidado de autenticidade de Catfish enquanto documentário, mas nenhuma do seu poder intrigante ou da agitação provocada enquanto thriller. Nev, Ariel e Henry sustêm que tudo o que foi filmado é real, apenas sujeito a montagem (com introdução de separadores animados ilustrativos e da reprodução posterior de algumas páginas do Facebook, entretanto apagadas), mas que nenhum evento foi encenado para enfatizar o seu efeito. Esta óptica tem sido contestada por parte da crítica e do público, que considera demasiado conveniente existir metragem desde o inocente início da narrativa, quando não se adivinhava que fosse dar material para comercialização. A mesma asserção consta de dois processos judiciais a correr contra a distribuidora de Catfish, por infracção de direitos de autor relacionados com canções utilizadas na banda sonora. Há uma autorização tácita para o seu uso por documentários, que pela própria natureza não podem controlar o que rodam, enquanto que uma obra de ficção carece de permissões das discográficas, que não foram pedidas.
Factual ou ficcionado, Catfish circunscreve-se num ciclo de filmes que se tem centrado no logro perpetrado através das novas tecnologias, nomeadamente das redes sociais, a maior parte das vezes por parte de predadores sexuais que visam jovens adolescentes para fins criminosos (Megan Is Missing, Perigo Online). A premissa de Catfish é, nessa perspectiva, original, tornando-se ainda mais arrepiante pelo facto de, vamos acreditar, reflectir factos reais. Mas, mesmo se seja rejeitada a tese da veracidade da história, identificando-se na sua génese como algo próximo de Blair Witch Project (1999), continua a ser um documento (não documentário) importante na desconfiança com que a Internet continua a ser encarada.
Outro elemento introduzido por Catfish é o do roubo de identidade virtual, tão simples como criar um perfil falso e adicionar fotografias de terceiros, atribuindo-lhes nomes, conversações e vivências. O trio vem a descobrir que a persona online de Megan se alicerçou em fotos de Aimee Gonzales, modelo canadiana e fotógrafa amadora, copiadas do seu MySpace e do site Model Mayhem, sem o conhecimento desta. Esta invasão de privacidade é apenas uma das confissões de Angela Wesselman-Pierce, mãe de Abby, num clímax intenso e surpreendente.
No meio do suspense, fica também a desculpabilização pela criatividade, sendo a Internet um meio tão peculiar e cheio de possibilidades, que permite em simultâneo alguém ter milhares de amigos e seguidores, mas não apaga a frustração de uma existência presencial vazia e solitária. Há muitas formas de encarar Catfish: logo à cabeça, como documentário ou fraude, mas também como uma intriga criminal e advertência aos perigos da Internet. Seja qual for a óptica, permanecerá como o filme que, em 2010, mais interrogações e polémica gerou, tanto pelo tema como pela forma. A usurpar ou não o género documental, é um objecto consistente, curioso e emocionante.
Catfish 2010
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