Quentin Tarantino e Robert Rodiguez decidiram divertir-se e reavivar o cinema que, na sua adolescência, enchia as salas das pequenas localidades. Eram filmes de baixo orçamento, que exploravam as sensações mais básicas de um público sem estudos, estimulando-o com sexo e violência. Por cada exemplo que ultrapassou a malha do tempo, dezenas perderam-se no esquecimento, ocasionalmente recuperados como peças de colecção. Com o projecto Grindhouse(2007), Tarantino e Rodriguez reinterpretaram o género e dirigiram uma longa-metragem cada um (À Prova de Morte e Planeta Terror), convidando os amigos Eli Roth e Edgar Wright a contribuírem comtrailers falsos, que seriam colados no início de cada filme.
Motivada pela paródia desses trailers, a produção de Grindhouselançou um concurso internacional de melhor Trailer, com os vencedores a serem exibidos no próprio de origem. No Canadá, o título vencedor foi Hobo With A Shotgun, sobre um mendigo que trocava o sonho de comprar um corta-relva por uma caçadeira e limpava, em dois minutos, a cidade do crime. Depois de Robert Rodriguez esticar o trailer de Machete em 105 minutos (2010), Jason Eisener pediu mais umas moedas para o seu mendigo.
A história é tão velha como a Bíblia. Sodoma e Gomorra simbolizaram a cidade da perfídia e Deus fez nela cair bolas de fogo, matando a eito porque, de tão longe, era impossível ser mais exacto. A ideia tem encontrado repercussões pela ficção desde então, mas os americanos têm-se ficado pela assunção cristalizada em Shane(1953): um estranho chega à cidade e não encontra outra solução senão limpá-la à lei da bala. Clint Eastwood vestiu a farda durante três décadas, tanto munido de um six shooter como de uma .44 Magnum. Charles Bronson também não deixou a missão por mãos alheias e passou de arquitecto a vigilante, matando todo o tipo de escória menos Jeff Goldblum, quem, afinal, lhe violou a filha e matou a esposa. Mel Gibson tornou-se Mad Max (As Motos da Morte, 1979) e RoboCop (1987) foi para além das suas directivas, tudo no cumprimento do dever.
Rutger Hauer, a recuperar de um longo período de decadência, não é alheio ao género nem à condição. Outrora o actor preferido de Paul Verhoeven (Delícias Turcas, O Soldado de Orange, Amor e Sangue), este holandês tomou Hollywood de assalto, contra Sylvester Stalloneem Os Falcões da Noite (1981) e Harrison Ford em Blade Runner (1982), pontuando a acção com uma bela história de amor impossível, A Mulher Falcão (1985). Em 1986, destacou-se no panteão dos grandes psicopatas com o misterioso John Ryder (Terror Na Auto-estrada) e recebeu alguns prémios europeus com o arrastadoA Lenda do Santo Bebedor (de Ermanno Olmi, 1988), onde fazia de mendigo, o que repetiu em Fúria Cega (1989), adaptação americanóide do samurai cego Zatoichi, famoso no Japão por corrigir males com a sua katana, em filmes e séries. Terá sido o papel que melhor o preparou para Hobo With a Shotgun.
Mas, sem se saber bem como, Hauer, um loiro de olhos azuis penetrantes, passou de atraente a deprimente. É verdade que, no final da década de oitenta, já passara a barreira dos 45 anos, mas o descuido físico transformou-o num canastrão. Relegado à produção de série B, cada vez se foram tornando mais grotescas as suas prestações de supostamente irresistível velho gordo, com ele a, estranhamente, entrar em dois ou três filmes por ano. Na década e meia que se seguiu os seus papéis foram-se tornando secundários, ainda que tenham sempre continuado prolíficos (comparável, talvez, a Malcom McDowell). Novo fôlego o ergueu quando, em 2002, George Clooney o convidou para um pequeno papel na sua estreia como realizador (Confissões de Uma Mente Perigosa), em 2003 apareceu nas séries Smallville e Alias – A Vingadora, em 2004 foi vampiro na minisérie Salem’s Lot (já o tinha sido em Buffy, A Caçadora de Vampiros, de 1992; prepara-se para ser Van Helsing, na adaptação de Dario Argento de Drácula, para 2012) e em 2005 os mais atentos tê-lo-ão identificado em Sin City e em Batman – O Início.
Seis anos depois, volta a ser memorável. Sim, o seu mendigo armado é um regresso à boa forma do actor, que a câmara de Jason Eisener e a cinematografia de Karim Hussain não desperdiçam. Apresentado que está o actor (se acaso fosse necessário), segue-se o filme. Cabe dizer, antes de mais, que alcança exactamente o objectivo a que se propôs: homenagear o nível mais baixo do cinema trash dos anos 70 e 80. Já o tinha conseguido no trailer. Se era uma aposta, pode considerá-la ganha. Mas, se pretendia dar um contributo à sétima arte, esse é outro assunto.
Os filmes que celebra caracterizavam-se por um elevado grau de amadorismo e ingenuidade (como os da Toma de Lloyd Kaufman, osGodzilas japoneses e as artes marciais dobradas em inglês que chegavam de Hong Kong), características ausentes de Hobo With A Shotgun. Assiste-se, sim, a um culto do grotesco cuidadosamente estilizado para que impressione, mas tão neutro e vazio como se fosse papel de parede de época. Eisener queria, notoriamente, fazer demais, com talento a menos.
Substituindo a honestidade dos verdadeiros exploitation por oportunismo, recheou o bolo de violência e gore até transbordar, apenas porque, supostamente, o efeito over the top iliba de responsabilidades. Mas este abuso da violência gráfica é tão grosseiro e transparente que não chega a ser entretenimento, é pura abjecção formal. Nem as intensas cores technicolor ou a banda sonora electrónica a soar à John Carpenter lhe dão vida. A dada altura, o anti-herói é repreendido: Não podes resolver todos os problemas do mundo com uma caçadeira, ao que este responde: É tudo o que sei fazer. Sim, este é o paradigma da América sintetizado. Mas, da mesma maneira que já ninguém a vê como a terra da liberdade e da justiça, mas das desigualdades e da hipocrisia, também este filme se alimenta das carcassas dos mais tresloucados veteranos do Vietname e as dá a comer aos ainda em pior estado soldados do Iraque pós-Saddam.
Dito isto, há uma cena que convém abordar, por surpreender pela sua eficiência: a incursão dos dois elementos da Peste no hospital. Se todo o filme é o alucinado pus de excrementos de uma loucura viral, esta cena, de difícil concretização, acaba por funcionar em pleno. De resto, os filhos de Drake são erros de casting indesculpáveis e o resto está dito.
Hobo With A Shotgun 2010