Freddy Krueger é uma instituição. Infanticida de rosto queimado, humor corrosivo e uma luva com quatro lâminas soldadas, nasceu das mãos de Wes Craven e dos bolsos quase vazios do estúdio independente New Line. Oito longas metragens (incluindo Freddy vs Jason, 2003), uma série televisiva e dezenas de comics depois, volta ao cinema, para mais uma ronda, não de pesadelos, mas de bocejos.
Michael Bay, a repousar de Pearl Harbor (2001) e antes de sonhar em carregar as baterias dos Transformers (2007), decidiu dedicar a sua produtora Platinum Dunes a remakes de terror dos anos 70 e 80.Massacre no Texas (2003), Amityville (2005), Terror Na Auto-Estrada(2007) e Sexta-feira 13 (2009) precederam Pesadelo em Elm Street(2010). Com Leatherface, Jason Voorhees e John Ryder em carteira, admira que não tenha conseguido apropriar-se de Michael Myers (Halloween, 2007).
Pesadelo em Elm Street (1984) foi o primeiro filme da produtora New Line, até então mera distribuidora de celulóide alheio. Abraçando o projecto enquanto estúdio, viu-se em sérias dificuldades financeiras e chegou às portas da falência. A dada altura, as filmagens chegaram a parar por falta de financiamento, mas com recurso à imaginação e à criatividade, até uma tela de spandex simulou uma parede através da qual o rosto do mal tentava atravessar o tecido da realidade. O eventual sucesso do filme e o estatuto de culto que atingiu permitiu à New Line dedicar-lhe seis sequelas e auto-intitular-se de A Casa Que Freddy Construiu.
Para o remake, Michael Bay escolheu Samuel Bayer, não aceitando as suas negativas até este sucumbir à proposta. Realizador devideoclips para bandas como Garbage, Cranberries, Green Day e Blink 182, a sua inexperiência em longas metragens faz desta aposta uma autêntica roleta russa. Apesar disso, a confiança de Michael Bay nele foi tal que o contrato com a Platinum Dunes o coloca à frente de mais dois projectos, nomeadamente Fiasco Heights (2011) e Pesadelo Em Elm Street 2 (2012).
Samuel Bayer não era a pessoa indicada para trazer Freddy Krueger das cinzas. Nem é o facto de ser estreante, o qual poderia revelar-se irrelevante na face de méritos evidentes, mas o indesculpável autismo relativamente à sensibilidade exigida por este género cinematográfico. A condução do suspense, no território do terror, não se prende com a descoberta de um mistério mas, essencialmente, em criar um desconforto tal que faça o público recear pelos personagens e saltar a qualquer ruído ou movimento súbito. Convém frisar que este requisito tem de, impreterivelmente, ser controlado pelo realizador e não ser desviado, como uma nota de segundo plano, para o departamento de efeitos sonoros ou para o compositor.
Uma das razões para a longevidade da saga foi, sempre, a emanação de carisma por atrás da máscara. Mais do que os adereços (luva, chapéu e cara queimada), o que cativava em Robert Englund era o seu porte, o modo como se conduzia em cena, a linguagem gestual e o olhar. Cândido e simpático actor de cabelos loiros encaracolados (assim o recordavam os espectadores da série V, entre 1983 e 1984), Englund libertou-se desse fardo ao interpretar o assassino indestrutível. Ao contrário dos congéneres Michael Myers e Jason Voorhees, Freddy era capaz de expressar oralmente o seu ódio e não tinha pejo em mostrar o rosto. O chapéu, em vez de ocultar-lhe as feições gretadas, constituía um sinal de vaidade. O remake não quis seguir a via das oneliners mordazes do personagem, opção desconcertante, se tivermos em conta que um sádico em posição de poder gosta de rebaixar as suas vítimas através da chacota, é uma necessidade básica do prazer que retira da humilhação do outro. Gozar com alguém é um sinal de crueldade. Concede-se que o Freddy de Wes Craven não teve muitas oportunidades de fazer standup, mas também é certo que ele não era o herói do filme, mas o monstro que se ocultava na sombra. Heróis eram os adolescentes que tentavam perceber o que lhes estava a acontecer. Era com esses adolescentes que nos sentíamos identificados e quem queríamos que vencesse o duelo final. Para isso, era imprescindível criar empatia, eles tinham de parecer pessoas normais numa situação improvável. E não é assim tão difícil para um realizador consegui-lo; Chuck Russell, convidado a dirigir a terceira instalação (1987), fez com que nos preocupássemos com cada uma das vítimas do filme, através da construção de características individuais a cada uma delas.
Assinalados que ficaram os pontos principais do sucesso de Pesadelo Em Elm Street, aos quais se acrescenta a cereja no topo do bolo (as mortes mais criativas e impressionantes que a imaginação pode garantir), cabe analisá-los no remake. E o panorama é desolador. Primeiro, o actor. Jackie Earle Haley pode ter sido uma estrela televisiva infantil (com carreira iniciada em 1972) votada ao esquecimento e resgatada por Pecados Íntimos (2006), mas quem acha que este anão foi imponente como Rorschach, em Watchmen(2009), esquece-se que o que ele tinha de ameaçador era não se ver que era ele (gabardina com chumaços, chapéu, luvas e máscara). Como Freddy Krueger, Haley fracassa a todo o comprimento (e altura). A modulação de voz (que já praticava em Watchmen) assemelha-o ao Batman de Christian Bale (algo que já não funcionava em Bale) e, de guarda roupa e maquilhagem, não escapa ao ridículo. A máscara, só por si, não tem o potencial ameaçador da de Pesadelo Em Elm Street III e IV (as melhores, porque a partir da Parte V as opções nesse campo foram no sentido da simplificação e do encurtamento de tempo de aplicação, em detrimento da qualidade do efeito). Pode a nova versão ser mais realista, mas retira toda a expressividade ao rosto do actor e quase não lhe permite abrir os olhos. Roubado da verbosidade camp, Jackie Earle Haley teria de apostar grandemente na pose. E esta fracassa. Freddy Krueger não deveria ser um leprechaun de ombros estreitos e baixa estatura, sem a menor credibilidade a não ser porque o argumento o impõe. Na sequência em que Thomas Dekker (Jessie) se encolhe todo só pela mera presença de Freddy, a única questão que se coloca é a da incompreensível cobardia do adolescente, porque Haley, pura e simplesmente, não mete medo.
O argumento não é capaz de decidir-se entre a recauchutagem do original e a introdução de elementos novos. Uma vez que todas as sequelas seguiram o fio condutor básico de um grupo de adolescentes a ser atacado nos seus sonhos, a primeira metade do filme dá exactamente essa sensação, a de não passar de mais uma amorfa sequela, desinspirada e anónima, a recordar algumas cenas bem familiares, mas nunca com a mesma frescura. O ensemble juvenil é um saco de fantoches, que vão sendo retirados aleatoriamente do mapa sem que se chegue a conhecê-los ou a sentir nada por eles. Quando finalmente sobram dois, a indiferença é total.
Em vez de ser um infanticida, Freddy Krueger é, agora, pedófilo. Não há grande novidade, já que essa era a ideia inicial de Wes Craven, abandonada por receio de censura (Silent Night, Deadly Night, estreado na mesma altura, foi alvo de piquetes de pais por o seu assassino se vestir de Pai Natal e retirado antecipadamente das salas). O que é nova é a possibilidade de Freddy ser inocente das acusações. O que poderia ter sido interessante, se bem conduzido. Mas o guião de Wesley Strick e de Eric Heisserer não acertou em nada. Assiste-se a uma total ausência de realidade, ao ponto de se duvidar se não é tudo um sonho enfadonho, do qual pode acordar-se saindo rapidamente do cinema. O excesso de mise-en-scéne, por parte do realizador, e de teatralidade nas representações despe a película da sensação de quotidiano, fundamental a que se sinta a diferença entre este e os sonhos. Aqui, os personagens não convivem, não existem. Estão lá apenas para deambularem, como figurantes, até serem mortos. Na impossibilidade de nos identificarmos com eles, resta apenas o vazio de uma fórmula transformada em indigesto videoclip.
Pesadelo em Elm Street (2010) torna flagrante o quão dispensável realmente era fazer-se um remake. O original é uma obra coesa, que continuará a ser lembrada por muitos anos, enquanto que a nova versão revolta o cinéfilo pelas péssimas opções tomadas. Desajustadas foram as escolhas de realizador, argumentistas e actores. Para além de Jackie Earle Haley, incorrecta foi também a contratação da anoréxica Mara Rooney (Heather Langenkampf permanecerá nos nossos corações como a única e verdadeira Nancy) e dos emos Thomas Dekker e Kyle Galner. À crítica escapa a bela Katie Cassidy e os veteranos Clancy Brown e Connie Britton, tão secundários que até dói.
As cenas do original que são revisitadas são: a morte de Kris/Tina no tecto do quarto (mais curta e menos impressionante, mas os cortes no peito não desmerecem), a cena da banheira (que, no entanto, é interrompida antes que o Freddy a puxe para o fundo), Kris embrulhada em plástico no corredor da escola (mas Nancy não a segue), a mãe de Nancy é puxada para o mundo dos sonhos (no original, através da janela da porta, aqui através do espelho) e Jessie é atravessado pela luva de Freddy (como Jesse não apresenta as costas da camisa rasgada, como seria o caso se Freddy realmente atravessasse o seu corpo com as lâminas, suponho que a revisitação seja de Pesadelo Em Elm Street II, onde, por duas vezes, Freddy ataca do interior do corpo da vítima para fora).
Entre as cenas novas, conta-se o flashback da morte de Kruger. Trôpego e pouco emotivo, com Jackie Earle Haley a mostrar-se assustado e cobarde, em vez de um homem odioso em pânico por se ver acossado e em perigo. Isso confere algum sentido à ideia da sua inocência, mas conflitua com as revelações finais e com a maldade pura que se espera do título. Entre as incongruências do guião (e já nem falo da prova de natação, em que o nadador adormece e sonha, enquanto o corpo se afoga), encontra-se o ataque de Freddy a Nancy, no jipe. Apesar de ele a arrancar do assento para o parque de estacionamento chuvoso, ela acorda dentro do veículo e não no chão (em oposição, quando Kris é morta, Jessie vê-a cirandar pelo tecto e não a estrebuchar na cama – se numa situação o que acontece no sonho acontece na vida real, porque é que isso não acontece na outra?).
A Nightmare On Elm Street 2010